O raciocínio de Herman fora temporariamente amputado, e agora obedece ordens involuntárias
Sergio Vilas-Boas
Herman estacou no beiral do vigésimo andar do edifício onde possui um apartamento, em Londres. (Ele e a esposa Emile passam em média seis meses do ano na Inglaterra, a trabalho.) O raciocínio lhe fora temporariamente amputado, obediente a ordens involuntárias. Achava que tinha razões para experimentar a morte.
Envolto em um overcoat preto, pois fazia um frio de doer aquela noite, o olhar perturbado de Herman, como um periscópio, pairava sobre a luminosidade urbanóide. As paredes arranhavam-lhe as costas das mãos, duas extremidades horizontais de um homem de braços abertos, em forma de cruz. Se dependesse apenas de si, teria reduzido ao máximo a força da gravidade.
– Raimundo vai se atrasar, querido. O trânsito, as interdições, as festas, você sabe. Mas ele ligou dizendo que vem. Garantiu que vem. (Emile está bastante assustada, embora não demonstre; de vez em quando cospe cutículas longe.) Herman, o que você está tentando fazer? (e surgem as primeiras lágrimas.) Querido, diga alguma coisa. Qualquer coisa. Me fale da sua úlcera! Hoje eu quero ouvir. Juro que quero.
Herman gira lentamente a cabeça para a janela, onde a esposa, abobalhada, parece agravar-lhe a sensação de fracasso e desonra. Herman vinga-se repulsando-a moralmente, mantendo um soberbo estado de indiferença retilínea, buscando uma luminosidade repentina, que, de fato, emerge: fogos de artifício espocam no ar, misturando-se aos spots do Canary Wharf, às luzes girando nos tetos das vans, às estrelas incrivelmente próximas. Ele parece estar tentando tolerar-se por ainda estar vivo. (da boca de Herman, um vapor condensado, nada mais.)
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Dr. Max entrou pela garagem do edifício, fundos. Não percebeu o circo armado em frente à portaria principal. Um bando de gente atenta e apreensiva, bisbilhotando. Veículos estacionando nos arredores, oficiais do esquadrão de resgate armando camas elásticas, ambulâncias preparando socorros, equipes de reportagem movimentando-se como coiotes.
Quando Dr. Max abre a porta de seu apartamento, no vigésimo andar, dá com a cara atormentada de Emile, várias pessoas estranhas de olhos inflados, inclusive eu, e um oficial uniformizado da Brigada de Operações Especiais. Ninguém diz coisa alguma, nem mesmo Dr. Max. Mas vai até a janela, para onde todos olhávamos, e enfia a cabeça na noite. O cenário é tão autodescritivo que o médico se esqueceu de perguntar como havíamos entrado. A mim, porém, Emile deixou escapar que tinha uma cópia “clandestina” das chaves.
– Você não devia estar de plantão? (pergunta ela, buscando abrigo no ombro de Dr. Max.)
– E estou. (Max franze a testa; delicadamente, desgruda o corpo dela do seu e a repreende com um olhar direto e silencioso.) Vim só apanhar uns livros.
Na verdade, Dr. Max passara em casa para trocar de roupa. Confidenciou-me, em imaturos e ostensivos sussurros, que ia deflorar o Terceiro Milênio em companhia de uma “tcheca maluquinha”, que conhecera na última viagem a Praga. Demorou a se dar conta da real situação em que Emile estava metida. Exceto ela, ninguém acreditava que Herman fosse capaz de saltar.
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Dias antes da gota d’água, do provável golpe último, Herman havia assediado Emile. Insinuara a prática de “algum tipo de sexo”, o que ela recusou prontamente. Preferiu continuar jogando paciência com o computador. Agora Emile se sentia culpada, por essa e por outras.
– Faz tempo que a tristeza vem mordiscando os calcanhares do meu marido. E nem percebi. (assoa o nariz.)
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Dr. Max achou, por devoção à medicina, ou talvez por piedade, que tinha certa responsabilidade no caso. Devia ajudar a dissolver o impasse antes de ir ao encontro da tcheca, embora o tempo inteiro salientasse que “o Hospital o esperava”.
– A senhora conhece os afetos e desafetos dele? (estava claramente representando; Dr. Max não deve ser assim tão solene com Emile quando a sós.)
– O quê? (ela se espanta.)
– Digo, afeto por alguma coisa. Tem alguma coisa de que ele goste muito?
Emile se esforça para resgatar alguma lembrança que possa traduzir em um nome.
– No momento não me ocorre nada. (e logo desiste de arriscar; diz que está sem forças.)
– Ele não é afeiçoado à senhora? (pergunto, tateando para não parecer maliciosa e intrometida.)
Ela coça as sobrancelhas e encara Dr. Max como quem pede apoio, autorização ou a indicação da porta de fuga.
– Acho que é mais ligado ao Martin. (lamenta com os ombros, patética; corre para o banheiro.)
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Pelo que entendi, a vida de Herman não foi só decepções: a revista “Yourself” dedicou-lhe uma página com foto em 1998, enumerando suas tacadas certeiras à frente de uma multinacional de cosméticos; escrevera um livro, “Como Prosperar Num Mundo Aparentemente Sombrio”, que entrou uma vez na lista dos mais vendidos no gênero economia/administração/negócios/direito de um jornal do Rio de Janeiro. Chegou a ser convidado para algumas palestras.
– Eram entediantes. (suspira Emile.) Ele criava expectativas, mas nunca aconteceu de haver uma platéia realmente interessada. (um longo soluço.)
Por outro lado, Herman foi um businessman tipo nocauteador. Derrubara concorrentes ágeis e promovera fusões e incorporações entre empresas inglesas e brasileiras.
– As primeiras devoraram as segundas. (recorda-se a esposa.) Naquelas inúmeras reengenharias, ele mandou cortar cabeças que não foi brincadeira.
Para Herman, a máxima de que a concorrência estimula a evolução era “bullshit”. Preferia ver os concorrentes fenecerem como baratas, de pernas para o ar, debatendo-se para tentar sugar uma última molécula de oxigênio.
– Um ranzinza de desejar “mau dia”, isto sim. (resmunga Dr. Max, que também só deve conhecer Herman com os olhos de Emile.)
– Gosta de umidade. Nuvens cinzas. Chuvisco. (ela começava a encontrar no novelo a ponta de que tanto preciso para desenvolver o meu trabalho.) Evita o ar exterior. O pai inglês ensinou Herman a tolerar a solidão. A mãe brasileira fez dele um hedonista… (depois disso, só abriu a boca quando o psiquiatra de Herman chegou.)
O que mais? Acho que a rotina de Herman não ia além de edifícios climatizados, carros de vidro fumê levantado e blindado, insônias, relatórios, assinaturas com Mont Blanc, reuniões, viagens em primeira classe, cápsulas de vitaminas importadas.
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Lá embaixo, pessoas se esbarram umas nas outras, atabalhoadas. Parecem ansiosas pelo salto, pela queda livre, libertas dos dissabores recíprocos. Fracassos à parte, naquela noite Herman era mais importante do que as comemorações programadas para a chegada do Milênio.
Debaixo de rojões abafados ao longe, surgiu Raimundo, o psiquiatra brasileiro, acompanhado de uma intrigante paciência brutal, uma frieza perturbadora. Reage como se procedesse a uma autópsia.
– Sra. Emile? (arrisca o psiquiatra; esquivo-me e indico a esposa, que está a um canto, amparada por Dr. Max; Raimundo corrige o ângulo de visão.) Há quanto tempo ele está lá fora, naquele frio todo?
– Acho que faz uma hora.
– Hum… (o psiquiatra elabora uma equação complexa.) Seu marido tem um bom público, Sra… Sra…
– Emile.
– … Claro. Mas não vai pular. Estas novelas costumam durar poucos minutos. Ele não pula mais. Garanto. Daqui a pouco vai estar com fome.
– De onde tirou essa certeza? (Dr. Max aquece Emile com um manto.) Por favor, dê uma esperança mais concreta a ela, Mr. Raymond.
– Uma esperança concreta… Ok. Se é o que querem, vou tentar.
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– Sra. Emile, como acha que seu marido está ocupando o pensamento a esta altura dos acontecimentos? (mais uma vez tento atiçar os sentidos dela.)
– Com as conseqüências da morte, tenho certeza. É um ser humano como outro qualquer, mas fizeram-no acreditar que era um super-homem. Deve ter descoberto que não é. Senão, não estaria lá, tentando entregar os pontos. Ele sempre pensa no que pode perder.
– Como assim?
– Herman sentirá muito a falta de Martin, aquele seu abominável cãozinho. É o ser mais fiel que lhe restou, depois de tanta misantropia e deslizes. (silêncio absoluto.)
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Vou fazê-lo saltar, quer ver? O que falta a todos nós é coragem, e é isso que Herman vai nos mostrar. (o psiquiatra fala como se tivesse uma tabela de estímulos e respostas; o equivalente de uma bula.)
Emile dá um sorriso travado, combinação de pavor e lerdeza. Arranca uma lasca de unha como quem rasga um saquinho de ketchup do McDonald’s.
– Sim, estou falando sério. (insiste Raimundo.)
Dr. Max enterra os dedos nos cabelos. Está muito mais ansioso do que preocupado. Não compreende a frieza do psiquiatra.
Lá embaixo, uma série de camas elásticas alinhadas, à espera de Herman. À minha direita, um corpo cravado na parede úmida, fundido a ela como as efígies das moedas de euro. Além de distante, estava geograficamente inatingível. Os homens da brigada não tinham como alcançá-lo.
A “Cool Britânia” de Sir Tony Blair não apresentou aos espectadores boquiabertos uma forma imediata de salvar um alucinado disposto a jogar-se de uma altura de 70 metros. Um oficial do esquadrão tenta convencer Herman a desistir, já que não tem como agarrá-lo pelo pescoço e receber a medalha sonhada. Herman não dá ouvidos.
O psiquiatra acende outro cigarro, enquanto dois helicópteros espreitam, como moscas.
– Hoje estou sem idéias, o que não é comum. (depois de ter sido rechaçada a proposta lunática de incentivar Herman a saltar, Raimundo ficou assim, desolado e sentimental; chamaram-no de louco, e isto o abalou.)
Max caminha em direção à sacada, massageando a testa.
– Pense logo em alguma coisa. (olha no relógio: 23h35; está atrasado para o encontro.)
– Seu nervosismo é ridículo, Max. Herman tem todo o direito de pular. Amanhã poderá ser um de nós. (Raimundo faz uma pausa; um longo trago; bolhas de fumaça azul.)
– Você é um covarde, Raymond. (apesar de exaustos, todos se intimidavam.) Por que não tenta dizer ao Sr. Herman que irá pular no lugar dele? Quem sabe assim não atinge o nervo nu? Não percebe que o que ele precisa é afeto? De alguém que se importe verdadeiramente com ele? (argumento já usado por mim, caro Dr. Max.)
Emile entrega a Raimundo uma bebida de aroma rascante. Enquanto nos distraímos, Dr. Max atravessa a janela. Sinto uma pontada no peito, mas retraio. Um movimento rápido e ele já está com os dois pés sobre o beiral. No térreo, a multidão vai à loucura. Herman gira o pescoço para o lado da janela.
– Pare onde está. (voz grave, corajosa, invulnerável, ao contrário do que imaginávamos.)
Dr. Max não dá ouvidos. Tateia a parede mais alguns centímetros. Emile corre para a janela, em pânico.
– Ficou maluco, Max? Você pode cair, idiota! Não faça isso, pense em nós dois, no nosso amor! (tensa, perdeu a cautela; tanto que ainda não notou que o vizinho já a descartara, nos dois sentidos, seja qual for o desenlace desta noite.)
O ousado amante de Emile prossegue lixando as solas dos sapatos no beiral, centímetro a centímetro, tentando forjar uma coragem que, no fundo, é um atestado de irresponsabilidade, que afronta ainda mais a auto-estima tardiamente abalada de Herman.
– Mais um passo e será o fim. (grita.)
– Tenho uma proposta. (Max ofega, mal consegue explicar-se.)
– Já te mandei parar. (devolve Herman.)
– Escuta: eu salto e você retorna, ok?
– Você está superestimando suas aptidões psicológicas…
– Combinado assim? (interrompe Dr. Max.)
Herman move o globo ocular na direção dos fogos, cada vez mais intensos. A ansiedade em relação à chegada do Milênio é enorme, embora ninguém saiba muito bem por quê. Nunca havíamos experimentado nem mesmo uma virada de século, talvez por isso. Alcoólatras russos, segurando garrafas de vodca, gritam “pula, pula!”.
– HONRE O SEU RITMO, HERMAN!! (grita Raimundo, intrometendo-se no processo.) Ritmo é coisa pessoal! Lembra-se do que conversamos semana passada? O ritmo ideal, Herman, é o do sempre! Lembra-se?
Os membros da brigada, que já se mostravam sonolentos, correm para reposicionar as camas elásticas – parecem moleques aparando frutas cadentes com a barra das camisetas. Os londrinos são acometidos por uma agonia instantânea, diluída no rufar dos tambores, no espocar dos fogos, na ventania dos helicópteros, tudo na tevê.
Às 23h55, os olhares de Herman e Dr. Max ainda estavam entrelaçados, hipnotizados pelas digressões premonitórias da morte e por aquele instante mínimo em que é possível repensar um pouco de tudo, até da própria vida.
– Nós dois saltamos, então. (Herman nunca falara tão sério em toda sua vida.)
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Herman estava em Londres quando recebeu um e-mail avisando-o da demissão. Provavelmente, nem havia se recuperado do tranco quando extraiu da estante alguma publicação e a maldita foto instantânea caiu sobre o carpete felpudo. Nela, Emile e Dr. Max beijando-se.
Horas depois Herman estacou no alto do edifício como um dois-de-paus. E então, como assistente social, fui acionada para amparar as prováveis subvítimas da consumação. Em diversos pontos do mundo, rolhas de champanhe, entre outras coisas, quicavam no asfalto frio.
(2000)