É como se eu não coubesse nas coisas voláteis
Sergio Vilas-Boas
Às vezes me sinto tanto em choque quanto em xeque. Em choque com o quê? Com a minha própria memória. Ok, mas em xeque também? Sim, em xeque diante da imposição de adotar uma vida própria ou me adaptar ao estado das coisas sem meios-termos.
A História nos deu golpes nocauteantes. Tomamos um cruzado de direita no ouvido esquerdo e um soco vertical no queixo, de baixo para cima. Estamos vendo o ringue girar em sentido anti-horário. A oxigenação foi interrompida, os pulsos estão em descompasso, vaga-lumes piscam aqui e ali enquanto nossos joelhos se arranham no solo áspero.
“Cinco!”, o juiz conta. “Seis!”, grita.
E continuo vendo estrelas. Não sei ainda por que foram me ensinar, quando eu era garoto, que a vida recompensará naturalmente os meus méritos e esforços. Apesar de todas as precariedades, tive uma educação humanista. Mas como praticá-la em um mundo movido por dinheiro e aparências, em que cada qual cuida (mal) do próprio umbigo? Houve uma exacerbação do materialismo, por certo, e isso tende a produzir feridas profundas.
Há quarenta anos todo mundo queria que o sistema caísse, mas hoje o sistema cai trinta segundos e todo mundo fica puto. Rá-rá-rá. Propaganda cretina. Cadê a urgência das ruas? Será que o aquecimento global vai conseguir nos unir em torno de uma causa coletiva? Cacete, não consigo viver dentro de uma máquina, não aceito que me vejam através de uma webcam. É como se eu não coubesse nas coisas voláteis.
E olha que em quinze anos experimentei seis inovações tecnológicas decisivas: da máquina de escrever para o processador de texto; do processador para o microcomputador; do DOS para o Windows; da carta para o fax; do fax para o e-mail; do papel para a World Wide Web. Tudo foi rápido demais! O que será de mim se eu não comprar um iPhone!!
Até esqueci que sou datilógrafo (fiz curso e tudo); que estudei em algumas escolas públicas paupérrimas mas dignas; que, durante a adolescência, conheci gente suficientemente corajosa para aplaudir minhas rebeldias tolas e ainda por cima me dizer: “Chuta o balde, rapaz!”; esqueci que conviver, tolerar e solidarizar não custa nada; esqueci que as pessoas caídas no desengano precisam de comida, roupa, barba feita, banho tomado, RG, CPF, enfim, um CCA – Cadastro de Corpo e de Alma.
Sem isso, tudo o mais não passa de pura abstração.
Sou um quarentão precocemente senil. Possuo todas as faculdades mentais, mas me peguei abdicando da tarefa de lembrar, de readaptar experiências valiosas, de contribuir para a restauração da dignidade. Essa obsessão toda pelo futuro está me contaminando também. Não posso permitir. Lembrar é trabalhoso mas saudável; esquecer é fácil, mas embrutecedor.
Não pense muito.
Não leia tanto.
Sinta-se à vontade para esquecer o que fez e o que te fizeram.
Compre, compre, compre.
Possua objetos digitais em primeira mão.
Crie um blog (oh, no!).
Entenda o Oriente Médio.
Ambiente suas histórias na Índia, na China, no Afeganistão…
Pratique meditação, ioga e tai chi chuan.
Apareça mesmo onde você odeia estar.
Abandone essa sua antiquada noção de consistência (Bah!).
O desapego à lembrança atingiu níveis drásticos, e agora terei de reagir em condições superadversas. O ringue continua girando, e nós, zonzos, apáticos. Vejo gurus incentivarem a alienação por meio de um discurso tecnológico intragável; e outros gurus (não-tecnológicos) incentivando a alienação por meio de religiões insuportáveis.
Perdoai-me: por eu ter aceitado o novo apenas na condição de substituir o velho; por minha incapacidade de transmitir aos mais jovens que o velho e o novo devem coexistir; por eu ter me esquecido da História; por eu ter engolido a estúpida ideia de que as coisas têm de mudar apesar da minha vontade. Têm?
“Onde você está trabalhando?”, minha mãe me perguntou certa vez.
“Em vários lugares e em lugar nenhum”, respondi metaforicamente.
Daí ela quis saber se eu tinha carteira assinada, INSS, FGTS, cupom-refeição, plano de saúde, férias, essas coisas.
“Não, mãe, não tenho nada disso”, engoli em seco.
“Mas você já tem mais de quarenta anos!?”, ela se espanta.
“Sim, tenho.”
“Se você não tem emprego fixo, porque reclama tanto de cansaço?”
“Exatamente por isso, mãe. Exatamente porque não tenho… emprego fixo.”
“Frila… O que é frila?”
“Um prestador de serviços inseguro”, simplifico.
“Ah, tá”, ela fingiu que entendeu. “E vale a pena?”
“Não se trata de uma escolha. É uma necessidade.”
“Qual vai ser o seu futuro, meu filho?”
“Não sei.”
“Não sabe?”
“Devo continuar autônomo pro resto da vida.”
“Então você precisa pagar INSS como autônomo”, conclui pragmática.
Mudei de assunto. Na verdade, a condição de “autônomo” – talvez desse mais status dizer “jornalista independente” –, apesar de aviltada pelas circunstâncias da civilização digital, é infinitamente melhor do que a de pelo menos dois bilhões de terráqueos miseráveis.
Você pode pensar o que quiser sobre o fato de às vezes eu me sentir incomodado ao ver as pessoas comprando o que não precisam, falando loucamente ao celular, conectando-se onipresentemente à web, ignorando afetos e civilidades básicas, fingindo ter uma consciência tão autoconsciente que as impede de praticar aquilo que apregoam.
O fenômeno continua desafiador, apesar da minha sensação de cerceamento, bloqueio e asfixia. É como se, sendo jornalista de uma empresa privada, não fosse possível eu ser o que realmente acredito que sou. O que está por trás desse sentimento de que o jornalismo me torna uma criatura imprestável?
Ah, as causas perdidas são uma fonte inesgotável para os lugares-comuns.
Claro que todos somos o que os outros pensam que somos; o que gostaríamos de ser; o que não fomos; o que acreditamos ingenuamente sermos; o que gostaríamos de ter sido. Além disso, há a “biografia oficial”, na qual está escrito que você deve ser o que acham que você deve ser. Esse entrecruzamento de percepções é necessário.
Mas e as referências? Quem são as nossas referências?
“Nos velhos tempos”, como escreveu o americano Jack London há mais de cem anos, “os grandes cavaleiros recebiam suas honrarias no campo de batalha”. Hoje não. A competência se despregou da recompensa. Fama e inutilidade mesclaram-se. A visibilidade agora se pauta pela auto-afirmação, e o narcisismo manipula tanto quanto é manipulado. Ho, ho, ho.
“Sete! Você está bem?”, pergunta o juiz da luta dando-me um tapinha no rosto.
“Sim, estou.”
“Qual o seu nome?”
“…”
A minha “geração” (a “geração 65”, putz, que papo chato) não foi preparada para lidar com uma conjuntura na qual a incitação à criatividade pessoal, à excentricidade e à procura constante da diferença é permanente e produz cada vez mais do mesmo. Não sabemos vencer sem participar. Não gostamos de receber medalhas por não termos feito absolutamente nada de novo ou duradouro.
Soa o gongo. O ringue já não gira de um modo nauseante. Ganho tempo (sempre haverá tempo) de jogar uma água no rosto e recobrar os sentidos; sempre haverá a chance de redescobrirmos verdadeiros heróis, criaturas a serviço da coletividade, seres que passam tão rápido que até as montanhas se movem. (Publicado na revista “Kairós”)