Como escritores, o que podemos almejar a respeito de alguém, seja em um perfil de duzentas e poucas páginas, como este, seja em uma biografia de milhares de páginas, são alguns fragmentos verificáveis
Sergio Vilas-Boas
Eu não conhecia o sr. Luiz Garcia. Comecei a conhecê-lo um pouquinho durante a minha primeira reunião em São Paulo com Celso Machado, diretor de cultura corporativa da Algar, e com Marco Oliveira, consultor experiente que conheci em sala de aula (Marco foi meu aluno no curso de pós-graduação em Jornalismo Literário).
A partir do momento em que aceitei o convite, o projeto passou a depender de mim para existir; e eu, como autor, sabia que, naquele momento, estava me ligando para sempre à vida do sr. Luiz e de seus convivas (e vice-versa).
Este livro faz parte de um projeto ambicioso. “Doutor Desafio” integra um conjunto de ações que o Grupo Algar vem empreendendo no sentido de registrar suas memórias e experiências coletivas e individuais para as futuras gerações.
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Na minha visão, o primeiro grande passo dado pela Algar nessa direção foi a construção de um extraordinário acervo de memória oral em parceria com o Museu da Pessoa.
O convite era irresistível. Além de se tratar de um homem íntegro, sobre o qual não pesam dúvidas de natureza ética, o projeto se encaixava perfeitamente em alguns critérios meus. Estes:
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dentro do possível, prefiro os vivos aos mortos, e a prática tem me mostrado que essa escolha não compromete em nada a perenidade e o escopo da narrativa;
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gosto mais do gênero Perfil (ao estilo jornalístico-literário) que da biografia exaustiva, em geral com uma aparência de catálogo e talvez por isso um tanto indigesta e autoritária;
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prefiro o foco à quantidade;
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em vez de seguir uma cronologia rígida, como a da maioria das biografias convencionais que vemos nas livrarias, prefiro entrelaçar os episódios.
Até porque a vida narrada não é a vida vivida. Até porque uma vida não cabe em um livro. Na verdade, não cabe nem mesmo em uma coleção infinita de livros. A vida vivida existe em si mesma e, portanto, sua totalidade não pode ser atingida por meio da palavra escrita.
Como escritores, o que podemos almejar a respeito de alguém, seja em um perfil de duzentas e poucas páginas, como este, seja em uma biografia de milhares de páginas, não é nada além de alguns fragmentos verificáveis. Não é o volume de fragmentos que faz a diferença, mas sim a maneira de selecioná-los e organizá-los.
As parcelas da história de vida do sr. Luiz Garcia, contadas em “Doutor Desafio“, portanto, decorrem de escolhas minhas. Escolhi algumas facetas e episódios da vida dele. Assim tinha de ser. Assim foi pactuado.
Assumo inteiramente essas escolhas. Assumo-as ciente de que as pessoas que conhecem o sr. Luiz melhor do que eu, ou que pensam conhecê-lo a fundo, talvez fizessem recortes completamente diferentes dos meus.
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Mas estou seguro de que minhas escolhas são as mais apropriadas ao design original do projeto, que previa a abordagem pessoal de um observador posicionado fora do grande circuito de relacionamentos do sr. Luiz.
O que ao final permitiu que minhas seleções de facetas e episódios criassem um sentido dentro da narração, ainda que por acaso não agradem a alguns convivas do sr. Luiz ou mesmo a ele próprio, foi a pesquisa documental e oral que realizei.
O processo de biografar, independentemente de quem seja o personagem central, exige muita leitura, múltiplas entrevistas de compreensão e uma escrita de preferência elegante e acessível a audiências heterogêneas.
O acervo de experiências acumulado pelo Centro de Memória Algar, em parceria com o Museu da Pessoa, foi decisivo para o meu trabalho. Pude contar com exaustivos depoimentos (gravados) de pessoas que estão entre nós e de várias que já se foram. E tive acesso a textos e documentos imprescindíveis.
Acima de tudo, imergi em mais de quarenta horas de depoimentos do próprio sr. Luiz, parte deles gravados pelos entrevistadores do Museu da Pessoa, parte gravados pelo jornalista Ethevado Siqueira, especialista em TI/Telecom e hoje colunista do jornal “O Estado de S.Paulo”.
Esse conteúdo de memória oral gerado pelo próprio sr. Luiz deu sustentação histórica ao livro. Isso porque a participação do sr. Luiz no meu trabalho de campo foi discreta, ainda que fraterna; cautelosa, ainda que transparente.
Com o tempo foi ficando claro para mim que ele é o que podemos chamar de “um cidadão low profile”. Para ele, o que interessa é a Algar, não ele próprio, como marido, pai, filho, esportista etc. Às vezes me pareceu que ele não tinha ciência certa de sua importância local e nacional.
Com o tempo, então, tive que aceitar o fato de que devia me virar sozinho. Mais sozinho do que eu gostaria, diga-se. Tive de quebrar cabeça sem o auxílio intensivo dele para montar o inevitável quebra-cabeças que é a trajetória humana.
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Por outro lado, uma obra biográfica é (tem de ser) sobre uma pessoa, a menos que se queira vender gato por lebre. Sim, é sobre uma pessoa, não sobre uma instituição, por mais que vida e obra – estes dois componentes básicos presentes em cada um de nós – sejam (e são) indissociáveis.
Então fui percebendo que ele, no início, procurava manter uma distância segura de mim. Agiu assim até mesmo nas raras vezes em que buscou uma aproximação espontânea. E querem saber? Eu o admiro por isso.
Vivemos uma época marcada pelo fenômeno das celebridades sem obra. Vivemos um momento histórico em que o imperativo da performance se confunde com a ditadura das aparências. Isso, aliás, tem levado muito gente a premeditar a própria imagem e forjar (ou adotar) um personagem público muito distante do seu verdadeiro “Eu”.
Acho admirável que um homem como ele, com uma obra empresarial e social tão abrangente, e com influência positiva na vida de tantas pessoas, tenha optado por não controlar o processo deste livro e muito menos aproveitar a situação para criar (forjar) uma “autoimagem”.
Por outro lado, agindo assim, ele me deu mais trabalho, evidentemente. Busquei o quanto pude uma pluralidade de convívios diretos, a fim de enriquecer o texto com cenas do presente, como as do primeiro capítulo (“A missão”). Mas não foi possível.
A atitude dele me remeteu ao escritor Gabriel García Márquez, que disse ao seu biógrafo Dasso Saldívar algo mais ou menos assim: “Quer escrever a minha biografia? Ótimo. Mas não conte comigo. Escreva-a como se eu estivesse morto”.
De qualquer forma, mesmo sem ter podido me aproximar do sr. Luiz na medida que eu precisava (ou que eu gostaria), aprendi a conhecê-lo de outras maneiras. Alguns aspectos certamente me escaparam. Outros simplesmente não emergiram durante o tempo que tive (de fevereiro de 2010 a junho de 2011). Assim é. Faz parte. Além do mais, cada perfil é um perfil. Para cada perfil, um processo. E os processos são irrepetíveis.
Mas estou seguro quanto ao essencial: sr. Luiz é um homem íntegro, sério e autêntico, que transita com naturalidade por qualquer ambiente, nunca tentando ser outro além dele próprio, com tudo o que isso implica. E acredito que esse traço de personalidade dele está devidamente expresso no livro.
Agora um tópico que não posso desconsiderar: os causos têm peso elevado na cultura mineira. Reconheço a importância dos causos como narrativa, compreendo seus mecanismos, adoro ouvi-los. Os causos são mesmo um componente cultural valioso. No entanto, os causos idealizam tanto quanto iluminam; folclorizam tanto quanto revelam; divertem tanto quanto distorcem.
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Muitos causos gravitam em torno da “persona” do sr. Luiz, conhecido como Doutor Luiz (aliás, daí o título “Doutor Desafio“). Alguns são interessantes, outros não; alguns são ilustrativos/elucidativos, outros não; alguns são genuínos, outros me soaram retorcidos.
Infelizmente, não é possível construir um perfil apenas com causos, anedotas ou idiossincrasias, por mais atraentes, do ponto de vista do convite à leitura. Ciente disso, ponderei bastante o falado e o escrito; o especulativo e o comprovável; o fato e a criação; o sólido e o líquido.
Sr. Luiz disse no evento de lançamento do livro em Uberlândia que o Luiz do livro do Sergio é um Luiz sem defeitos. Discordo. Primeiro, a ideia de defeito é variável, não consensual. Segundo, não cabe ao autor de um perfil ou de uma biografia emitir juízo de valor sobre o modo de ser de seu personagem.
Por exemplo: ele é um homem indiscutivelmente teimoso (e o livro contempla esse outro traço psicológico dele). Mas ser teimoso não é nem bom nem mau a priori. É apenas um dado. Conforme o contexto, ser teimoso significa ser turrão. Noutro contexto, significa ser determinado. Estando bem contextualizado, alguns poderão ler como sendo uma “qualidade”; outros poderão ler como sendo um “defeito”. Quem está certo? Todos e ninguém.
Outra coisa: a linguagem escrita é mais rica quando não usada com o intuito de atacar e ferir. As palavras são nossas amigas. Existem aos milhares exatamente para que nós, escritores de não ficção, as usemos com a máxima sutileza e ponderação, a fim de permitir que os leitores, principalmente os leitores que não conhecem o sr. Luiz, tirem suas próprias conclusões (se quiserem).
Então, para encerrar: sr. Luiz, agora nossas vidas estão atadas para sempre por meio desta obra. Nem eu nem o sr. Luiz poderemos negar que “Doutor Desafio” é agora uma das fontes perenes de consulta sobre a sua existência, sua vida e sua obra. Da mesma forma, este livro agora integra a minha obra como professor de biografismo e como autor de narrativas biográficas.
Obrigado a todos que participaram direta ou indiretamente da narrativa! Obrigado ao sr. Luiz, meu “personagem”.
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Pergunta formuladas por alunos da Universidade de Uberaba (Uniube), sob a coordenação da professora Cíntia Cerqueira:
1 – Quanto tempo levou para produzir/finalizar o projeto (desde a assinatura do contrato até a publicação)?
Três meses de negociação para a assinatura de um contrato entre mim e a Algar Participações S/A, contendo as obrigações de ambas as partes, as condições de produção (recursos materiais e intelectuais), acesso a fontes primárias (material memorialístico de propriedade da Algar e outros), a autoria (ou seja, quem iria assinar o produto final – no caso, eu, mas eu poderia ser apenas um “escritor-fantasma”, se as partes assim preferissem) etc.
Seis meses para o trabalho de campo (exame do material memorialístico existente e entrevistas). Três meses para a redação. Um mês para a leitura da Algar, patrocinadora do projeto, conforme estabelecido em contrato. Leram o livro, pela ordem, então: 1) Celso Machado, diretor de cultura corporativa; 2) Cícero Penha, diretor de RH; 3) Luiz Alexandre, filho do sr. Luiz Garcia e atual CEO. Somente estes três leram a primeira versão.
Quinze dias para eu fazer as correções de dados factuais (apenas eventuais erros de informação) apontados por esses três leitores. Houve poucos erros, felizmente, apesar de muita coisa ter sido relatada oralmente (e a memória é traidora). Daí, mais trinta dias para a leitura do próprio sr. Luiz Garcia, depois de feitas as correções apontadas pelos três leitores anteriores.
Demos outros dias para releituras minhas e do Celso Machado, período dentro do qual atendi a uma meia dúzia de correções factuais (sobrenomes, datas, lugares) apontadas pelo sr. Luiz Garcia. Fiz também alguns aperfeiçoamentos narrativos que julguei necessários. A assinatura do contrato de edição entre a Algar e a Editora Manole ocupou cerca de dois meses (foram coletados três orçamentos de editoras interessadas). Minha única participação nessa etapa foi indicar editoras e facilitar contatos.
2 – Houve interferências no texto? Você teve total liberdade ou lhe pediram cortes de cenas, modificações de trechos etc.?
Não houve interferências diretas na estrutura nem no meu estilo de escrever. O contrato era claro quanto a isto: eu só poderia atender solicitações relacionadas a “informação errada” ou “interpretação equivocada”.
3 – Quais são as principais exigências do contrato de produção biográfica, de ambas as partes?
Nesse tipo de projeto – aliás, em qualquer projeto de narrativa de não ficção – as partes pactuam a filosofia, o método e a escrita. Nenhum autor de não ficção pode fazer apenas o que quer. O diretor Celso Machado, quem me contratou, sempre defendeu que a obra deveria ser produzida por alguém de fora da Algar, de preferência um jornalista, alguém tão qualificado quanto “descontaminado”. O sr. Luiz Garcia é adorado, quase um Deus para a maioria das dezenas de milhares de pessoas que o conhecem. Calhou de, por acaso, ser eu o “outsider” que eles procuravam. Diante da necessidade apresentada pelo Celso, propus um Perfil, em vez de uma biografia gigante. Expliquei como é o trabalho de campo de um jornalista narrativo no que tange ao gênero Perfil. Ele ficou bastante animado.
4 – O que vocês definiram?
Definimos: os objetivos do projeto; a participação do sr. Luiz Garcia nos trabalhos; o tamanho do texto (cerca de 180 folhas A4, fonte 12, espaçamento 1,5); o prazo de entrega; se ia ser comercializado, se ia ser distribuído gratuitamente ou se as duas coisas. se o autor – eu, no caso – assinaria a obra ou se seria um “escritor-fantasma”; definimos as pessoas que poderiam me ajudar no processo de pesquisas e entrevistas, que implicava viagens; quais documentos histórico-memorialísticos estariam à minha disposição (e quais não estariam e por quê); os valores e as formas de pagamento; a cobertura de despesas extras etc. etc. Uma vez definido que eu seria o autor (que eu assinaria a obra), pactuamos algumas liberdades autorais. Assumi “o risco de o sr. Luiz Garcia detestar a obra e impedir a sua publicação” (felizmente, isso não ocorreu).
4 – Quantas pessoas foram entrevistadas, qual o tempo total de entrevistas realizadas (sem contar as já gravadas que você ouviu) e quanto tempo você passou com o personagem Luiz Garcia (em quantidade de encontros e em tempo total de entrevista)…
Entrevistados: 25, no total. Duração média das entrevistas: 90 minutos (mas também fiz várias por email e, nesse caso, é difícil medir com exatidão. Examinei mais de 30 horas de gravações de entrevistas pré-existentes e outras 20 horas de vídeos. No total, encontrei-me com o sr. Luiz Garcia em seis ocasiões. Visitei oito lugares apenas com o intuito de observar a presença dele, sem realizar entrevista formal.
6 – Como você lidou com os comentários recebidos durante a execução do projeto e de que forma elas refletiram no resultado? Depois de o projeto estar pronto, surgiram mais críticas?
Recebi super bem. O sr. Luiz não não me cedeu muito do tempo dele para o livro, mas foi, dentro do possível, atencioso e solícito. Tampouco agiu como um censor/interventor, direta ou indiretamente. Por fim, entusiasmou-se com o projeto e, até onde sei, ele gostou do texto, tanto que o leu inteiro durante um voo entre São Paulo e Brasília, segundo me disseram. De uma tacada só. Sem parar. Ah, ele não pôde resistir… [Risos.]