Lionel Shriver reaviva o ponto de vista feminino com protagonistas
dispostas a enfrentar e compreender os homens
Sergio Vilas-Boas
“Rascunho“, novembro/2011
A Intrínseca está lançando os romances da americana Lionel Shriver por ordem de sucesso. Primeiro, Precisamos falar sobre o Kevin (2003 lá, 2007 aqui), que arrebatou o público anglo-saxônico e, conseqüentemente, mundial — antes deste, ela havia lançado seis outros livros que foram fracassos evidentes ou sucessos despercebidos; depois veio O mundo pós-aniversário (2007 lá, 2009 aqui) e agora Dupla falta (1997 lá, 2011 aqui).
Confesso: torci o nariz para Shriver. Minha indiferença, na verdade, foi causada pelo enganoso termo thriller enfiado no texto da segunda orelha. Na minha cabeça quadrada, os thrillers são hoje mais eficazes no cinema e, portanto, seria um desperdício de tempo dar atenção a uma obra desse tipo tendo ao alcance das mãos tantas outras com estrutura e linguagem mais literariamente ricas e não baseadas em suspenses.
Quando me propus a resenhar Dupla falta, porém, me senti na obrigação de encarar os outros dois títulos, na ordem em que a Intrínseca os lançou. Surpreendi-me. Precisamos falar sobre o Kevin, vencedor do Orange Prize, perturba e aflige por sua verve psicanalítica. (O filme homônimo, exibido no Festival do Rio, com Tilda Swinton no papel de Eva Khatchadourian, entra em cartaz em dezembro na Inglaterra e nos Estados Unidos.)
A narradora Eva precisa falar sobre o Kevin com Franklin, o pai complacente e omisso. Em cartas assustadoramente francas, ela convida o ex-marido a refletir sobre detalhes biográficos que possam ajudar a explicar por que Kevin assassinou sete estudantes e um funcionário da escola de ensino médio onde estudava usando uma balestra. (Não por acaso, a tragédia ficcional ocorre em 8/4/1999, doze dias antes do Massacre de Columbine.)
De amplo escopo, o texto põe em xeque as mães e antimães contemporâneas ao relativizar a ambivalência de certas mulheres diante da maternidade e sua influência e responsabilidade na criação de pequenos monstros, como se a natureza se rebelasse contra a carência de nutrientes amorosos genuínos. Em um período que vai da gravidez à desagregação total da família após o crime, a protagonista enfoca o herdado e o adquirido, ora em oposição, ora em conjunção.
Shriver, contudo, deixa espaço suficiente para debates sobre educação, família, adolescência, bullying e assassinatos gratuitos, esse fenômeno tão americano quanto o cheeseburger.
Durante todo o tempo em que estive grávida de Kevin, combati a idéia de Kevin, a noção de que eu havia sido rebaixada de motorista a veículo, de proprietária para o imóvel em si. (…) No momento mesmo em que ele nascia, associei nosso filho com minhas próprias limitações — não só com o sofrimento, mas também com a derrota.
Mulheres e seus espelhos
Embalado pela suspeita de que este romance assustador não passava de um lampejo na carreira de uma escritora irregular e oportunista, fui até o fim. Meia hora depois de terminar a leitura de Kevin, eu estava arrancando ansiosamente da estante O mundo pós-aniversário, que, segundo os convivas de Shriver, é o mais autobiográfico de todos. Claro que seria uma frivolidade ficar procurando o “real” e o “imaginário”, até porque as possíveis semelhanças entre a protagonista Irina McGovern e a autora se encerram em um dado essencial.
Enquanto Shriver vive somente uma vida (compartilhada com Jeff Williams, baterista de jazz), com tudo o que isto implica, Irina, diferentemente, vive duas vidas, cada uma com um homem, em universos literários paralelos, alternados capítulo a capítulo, como se estivéssemos (e estamos) lendo duas histórias em vez de uma. O “e se…?” é questão central deste romance ainda melhor que Kevin (e com o bônus de não haver nele cortinas hollywoodianas).
E se Irina tivesse beijado o charmoso inglês Ramsey Acton, jogador de sinuca no topo do ranking, celebridade no Reino Unido? Por outro lado, e se, em vez disso, ela tivesse pedido licença para ir ao toalete se recompor e restaurar o “juízo” sobre seu sólido casamento com o mordaz Lawrence Trainer? Neste livro, a segurança e a tentação instigam uma ficção que se enriquece com a descrição de detalhes íntimos (talvez eu devesse dizer “rotineiros”) dos dois casais, cuja mulher é a mesma.
O jogo das ambigüidades femininas, expandido pelo ponto de vista das próprias personagens mulheres, é um componente importante do estilo de Shriver. É o caso de Eva em Kevin, de Irina neste livro e de Willy (Wilhemena) em Dupla falta. Dividida entre dois homens de temperamentos diametralmente opostos, mas honrados, cada qual à sua maneira, a Irina de Lawrence se deixa levar por uma vida em paz, estável e permanente, a vida “correta”, digamos, embora fundada em uma ilusão.
A Irina de Ramsey, por sua vez, toma uma decisão dolorosa e sofre por causa dela, mas, ao atingir o topo da curva da montanha russa, inicia uma descida repleta de adrenalinas e orgasmos. Falta a Ramsey a razão intelectual de Lawrence, mas seu sex appeal é irresistível. (A paixão fluente dos dois é excessivamente enfeitada no livro por metáforas de jogo de sinuca, o que prejudica o andamento.) Ramsey é desprendido, mas Lawrence exala uma confiança inabalável quanto ao “projeto a dois”.
Outra qualidade que enriquece o livro, embora não pareça ter sido intencional, é a fluência dos diálogos. As conversas de Irina com Lawrence e com a amiga Betsy transportam uma vivacidade incomum. Os monólogos interiores de Irina, filtrados por Shriver, são igualmente convidativos. Como a Eva de Kevin, que escancara suas emoções em cartas ao ex-marido, Irina é cativante: sardônica, racional, analítica, perceptiva, espirituosa e deliciosamente irritante.
Ranking de casais
Apesar do sucesso comercial, a trajetória de Precisamos falar sobre o Kevin foi duríssima. Recusado pelo agente literário, que se declarou “moralmente ofendido” pela obra, o livro hoje mais popular de Shriver enfrentou o desdém de dezenas de outros profissionais do mercado editorial anglo-saxônico. (Talvez eu a tivesse recusado também, não fosse a minha persistência em querer romper comigo mesmo quando necessário.)
A escritora enviou Kevin pelo Correio para dezenas de editores nos EUA. E nada. Colecionou trinta rejeições só no Reino Unido. Positivo nesse périplo foi o fato de que, sendo Kevin a sua “celebrada estréia”, Shriver não sofreu a pressão da expectativa que normalmente o público e a crítica criam em torno do próximo livro. O próximo livro dela já havia sido escrito 17 anos antes (The female of the species, 1986). E assim, um a um, seus seis primeiros romances estão deixando o limbo.
Mais que isso, o romance realmente posterior a Kevin, O mundo pós-aniversário” (de qualidade acima da média americana, embora cheio de gorduras) coroou a competência de uma autora tão pródiga quanto obscura. Dupla falta, motivação original deste texto para o Rascunho, é uma prova concreta de que qualidade literária, hoje em dia, tem cada vez menos relação direta com crítica ou com comércio.
Porque este romance de forma alguma macula a carreira pré-Kevin da escritora registrada em 1957 em Gastonia, Carolina do Norte, como Margaret Ann (ela adotou outro nome aos 15 anos, alegando que Lionel se adequava melhor aos seus modos então vistos como “de menino”). Mas a obra ficou fora de catálogo por cinco anos, o que agora soa incompreensível. Nela, a anti-heroína (de novo uma mulher) Willy Novisky é honesta, intensa e inteligente.
Apesar de seus 23 anos, ela é uma tenista promissora (esportes: outra marca no leque de escolhas da autora), com grandes chances de atingir o topo do ranking. Deixou de lado praticamente tudo o mais que a vida podia lhe oferecer, inclusive os estudos, para se dedicar ao tênis. Em meio a competições freqüentes, viagens desgastantes e eventos honrosos mundo afora, o máximo de afeto que ela se permitia era uma ou outra experiência ocasional extraquadra com Max, seu treinador.
Na vida real, tenistas de sucesso são obrigadas a conviver com uma rotina árdua e emocionalmente insatisfatória, da qual Willy nunca reclamava. O tênis é um dos esportes que exigem concentração extrema. Acertadamente ou não, certas derrotas inexplicáveis de grandes estrelas para adversários inexpressivos costumam estar associadas a desníveis psicológicos e emocionais do campeão durante o jogo, segundo os especialistas.
Willy, porém, diferentemente da tenista Sophie Mass, protagonista do romance A velocidade do amor, do chileno Antonio Skármeta, não sofre arroubos de depressão ou estresse. Ela é uma máquina de jogar. O tênis, para ela, é uma obsessão, e não há espaço para que pessoas potencialmente complicadas interceptem seu caminho rumo à vitória, sua única motivação existencial declarada. Isso, até conhecer Eric Oberdorf, matemático graduado em Princeton.
Eric se encantara pelo tênis aos 18 anos, idade muito avançada para quem almejava alguma posição de destaque nesse esporte já no início dos anos 1990. Aos 22, ele se mostra bastante ambicioso, assim como Willy, mas não atribui ao tênis o sentido de sua vida, ao contrário dela. Os dois também divergem em termos de estilo em quadra e adorações. Willy reverencia a paixão de John McEnroe; Eric respeita o autocontrole de Pete Sampras.
Renovação da guerra
Apesar das visões distintas sobre o tênis, a rotina de ambos transcorre em quadra, o lugar sagrado onde, literalmente, se conhecem, se apaixonam e se casam. Cientes de que viverão a maior parte do tempo longe um do outro, cada qual em um torneio, muitas vezes cidades/países diferentes, não há conflitos paralisantes no primeiro ano do casamento, embora a serenidade de Eric e a determinação de Willy, traços psicológicos que se refletem na maneira como ambos jogam, sejam fonte de tensões.
Quando haviam se conhecido, Eric estava entre os 1.000 melhores do mundo e Willy entre as 500. Tendo atingido o “top 200”, ela começa a vacilar, inexplicavelmente, perdendo posições, enquanto Eric entra na lista dos 500. No dia do primeiro aniversário de casamento decidem comemorar jogando uma partida “amistosa”. Eric vence Willy e, a partir daí, o vertiginoso declínio dela é agravado por uma lesão no joelho durante uma partida teoricamente fácil. Ela passa a observar, com indisfarçável ódio e inveja, a sólida ascensão do marido no ranking.
Dupla falta, diz Shriver, “não é tanto sobre tênis quanto é sobre casamento, um esporte um pouquinho diferente”. Eis aí um ponto de atração: o velho e bom tema da guerra dos sexos, porém abordado aqui não com abstrações, mas com oponentes concretos, dispostos a tudo em nome de triunfos mensuráveis. O pano de fundo é claro: apesar de sua energia masculina e sua obstinação, Willy não tem como chegar ao topo.
Pelas regras do tênis, a dupla falta ocorre quando o sacador por duas vezes invade a linha da quadra antes de bater a raquete na bola ou quando a bola do saque bate na rede. Nesse caso, o oponente vence o ponto. O título do romance remete, então, ao que seria a dupla desvantagem de Willy: a desvantagem biológica (ela é fisicamente mais fraca, portanto não pode superar a performance dos homens) e a desvantagem psicológica (ela é também emocionalmente mais frágil e se importa com o tênis a ponto de dizer “eu sou o tênis”).
Na verdade, ela nunca esteve preparada para perder e reerguer-se. Por outro lado, Eric encara seus sucessos como ocasionais, e as derrotas (na verdade, ele só perde uma rodada decisiva ao final do livro) como “coisa da vida”, à qual devemos estar acostumados. “Se eu não me realizar no tênis”, diz ele, “faço outra coisa”. Porém, o ponto-chave do jogo romanesco de Shriver neste livro — o pressuposto de que o casamento que castra a mulher é o mesmo que tonifica o homem — não foi costurado com sutileza.
A caracterização dos personagens é de um absolutismo exagerado, não deixando margens para evoluções, involuções ou gradações de personalidade. Eric é leve demais, competente demais, maleável demais e, talvez por isso, um marido fácil de se odiar. Willy, por sua vez, é passional demais, agressiva demais, competitiva demais e, talvez por isso, desinteressante tanto para os homens quanto para as mulheres que hoje evitam a palavra “feminismo”.
Vencer é diferente de “arrasar”. Shriver venceu. Sua habilidade narrativa (nos três romances mencionados aqui) é tão inegável quanto bem-vinda em um mundo literário que ainda não reflete o avanço dos tempos. Mulheres ficcionistas continuam compondo uma minoria, enquanto os escritores “machos” seguem impondo-nos protagonistas majoritariamente masculinos. Contudo, cuidado: idéias, crenças e opiniões a respeito de “sexos” não têm essa importância toda que às vezes lhes damos.
(Publicado primeiramente no “Jornal Rascunho”, edição de novembro/2011.)