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Escrito para uma palestra aos docentes e alunos da Universidade Federal do Ceará (UFC) em abril de 2011.
NARRATIVAS CENTRADAS EM PERSONAGENS REAIS
As pessoas tendem a ler com mais interesse textos nos quais conseguem enxergar a si próprias
Sergio Vilas-Boas
Nos últimos trinta anos vimos nascer (e passamos a usar) desktop PC (DOS), desktop PC (Windows), fax, laptop (Windows), e-mail, internet (www), Web 2.0, smartphones, redes sociais, tablets. O dinamismo da história das comunicações é uma flecha lançada ao infinito, que ainda não atingiu fatalmente um alvo específico. Mas, surpreendentemente, em vez de afastar o Jornalismo Narrativo da imprensa brasileira para sempre, a Era Digital, ao baratear custos, despertou-o de um sono de quase duas décadas.
Apesar da utopia vigente de que o jornalismo hoje pode ser feito sozinho (“eu, pauteiro”, “eu, repórter”, “eu, editor”, “eu, frila”, “eu, empreendedor”, “eu, a novidade”, “eu, tudo”), a Era Digital permitiu uma conclusão que não parecia óbvia no auge do frenesi tecnológico: o jornalismo em si (sua essência) não mudou muito, e a reportagem continua sendo o carro-chefe das empresas sérias.
Tudo isso ocorreu em um contexto de globalização: democracias se consolidando na América Latina; empresas jornalísticas fazendo tardiamente (em comparação com as empresas de outros setores) o downsizing e a reengenharia gerencial; postos de trabalho e funções sendo eliminados; profissionais experientes tendo de repensar suas carreiras; o jornalismo impresso entrando em crise; e as redações mundo afora tendo mais mulheres que homens, embora a maioria dos altos cargos continue nas mãos daqueles.
Este é o cenário mundial, macro. E no Brasil? Cenário aparentemente muito positivo. Nos últimos vinte anos o país atingiu: estabilidade da moeda, crescimento econômico, consolidação da democracia participativa, eleição de governos pluralistas, inserção mais ativa das classes C e D no mercado de mídia, com tablóides gratuitos (depois pagos), expansão da TV por assinatura com maior oferta de canais dublados e de produções locais com finalidade de informação e/ou entretenimento; expansão do acesso à Banda Larga etc.
Mas há um aspecto que interessa diretamente a todos nós, neste curso: o retorno à pluralidade de práticas em decorrência do desgaste do modelo imitador do diário americano USA Today e da revolução tecnológica. Em um país sem tradição democrática de longa data e com pouca tradição de jornalismo investigativo, isto significa uma abertura maior para a experimentação em termos de gestão, conteúdo e forma.
Resistências, há. E elas são culturais. É comum ouvirmos exercícios (naturais) de autodefesa nas redações mundo afora: a gente não tem espaço nem tempo; os salários estão estrangulados e não há como motivar os jornalistas; estamos sobrecarregados e mal conseguimos dar conta do básico; os donos de jornais não querem esse tipo de matéria porque exige deslocamentos e custa caro; não temos espaço para textos longos; meu editor nunca vai aceitar uma reportagem dessas, que não passa de jeito nenhum pelos vários “filtros” internos aqui da empresa; a objetividade é um patrimônio sagrado.
O jogo de censuras e autocensuras parece estar com os dias contados, no entanto. Os jornais diários nunca viveram um momento tão propício à inovação (em todos os âmbitos) como agora. Em um cenário de rápidas mudanças tecnológicas, o chamado storytelling (a arte de contar histórias) tem sido apontado como um dos caminhos para a oferta de conteúdos exclusivos e diferenciados (no impresso ou no online)
Por desconhecimento ou resistência, jornalistas me perguntam: “Narrar não é o que os jornalistas fazem todos os dias?” A resposta pode ser “sim”, “não” ou “depende”. A discussão sobre o conceito de narrativa é acadêmica e possui múltiplas abordagens. Alguns estudiosos acreditam que o simples ato de escrever uma matéria jornalística implica narrar; outros sustentam que narrativa é uma história centrada em personagens, em torno dos quais se desenrola um enredo ou trama.
O Jornalismo Narrativo se encaixa historicamente nessa segunda corrente. Os personagens são a razão de ser de todo o processo de produção da matéria – da pauta à edição. Estamos falando, portanto, de lidar com histórias reais sobre pessoas reais em lugares reais vivendo (ou tendo vivido) situações reais, mas com uma amplitude de pauta, apuração, redação e edição maior que no jornalismo informativo.
Narrar, além de tudo, é uma atitude. O novo (o diferente do habitual) requer ousadia. A primeira diretriz é ir a campo: observar, indagar, ouvir mais do que falar, mas falar também; conquistar a confiança das pessoas para que elas relatem suas experiências de maneira autêntica e espontânea; selecionar ocorrências que ajudem o público a entrar no relato e vivê-lo como se estivesse lá; apurar/escrever a história como se tivesse uma câmera na mão, dirigindo o olhar do “espectador”.
Há uma premissa simples por trás de tudo isso: as pessoas tendem a ler com mais interesse textos nos quais conseguem enxergar a si próprias. Isto significa que, embora não seja obrigatória, a prática do Jornalismo Narrativo é uma opção interessante na busca por diferenciação, e pode contribuir para que as “reportagens especiais” sejam realmente especiais, e não apenas “notícias espichadas” ou “relatórios secos”.
O Jornalismo Narrativo, em princípio, se destina a audiências cultas, compostas por pessoas que precisam da leitura não apenas para uma sobrevivência básica, mas para melhor se situarem no mundo complexo em que vivemos. Ávidas por conteúdos expressivos diferenciados, essas pessoas estão em toda parte e, além de plenamente inseridas nas estruturas atuais de consumo e interação tecnológica, ajudam a formar uma percepção positiva da empresa jornalística que acompanham/assinam.
[Não podemos nos esquecer que a leitura não é uma habilidade inata. Ninguém nasce leitor. As pessoas se tornam leitoras por meio de incentivos dados ainda no ensino fundamental, que levem o individuo a acreditar ao longo do tempo que a leitura de textos (de qualquer tipo) pode fazer diferença na vida de alguma forma. A maioria das pessoas, porém, não atinge esse nível de hábito, ou não vai muito além do processo meramente instrumental da leitura.]
[Não esquecer também que, em um contexto de notícias onipresentes, de fácil acesso e muitas vezes gratuitas, a informação se tornou commodity. A geração de conteúdos exclusivos e de alto nível é, portanto, fundamental para as grandes empresas jornalísticas. Nesse sentido, o Jornalismo Narrativo e o Jornalismo Investigativo, por exemplo, se apresentam como alternativas de diferenciação comprovadamente sólidas.]
Mas os métodos e procedimentos do Jornalismo Narrativo exigem treinamento específico, formação que não tem sido contemplada devidamente nos cursos de graduação e nos programas de focas. Daí a necessidade, conforme a demanda da empresa ou o plano de carreira do jornalista, de se procurar uma formação adicional.
Mais história
O Jornalismo Narrativo vem de longe. Seu marco histórico inaugural mais facilmente localizável está em algum momento da segunda metade do século 19, quando a literatura de ficção (os romances e os contos) rompeu o “melodrama” do período romântico com o objetivo de produzir “uma ficção verdadeira sobre o real” (no dizer de Gustav Flaubert).
A ascensão do realismo na ficção, principalmente o de temática comportamental, fomentou a explosão de autores clássicos que lemos até hoje, como Balzac, Dostoiévski, Tolstoi, Dickens e o próprio Flaubert; Dafoe, Machado de Assis, Euclides da Cunha e tantos outros.
Num crescendo de refinamento e sofisticação, o realismo acabaria penetrando em uma camada mais política, ansioso por denunciar as mazelas geradas pelo capitalismo e pelos regimes autoritários das primeiras décadas do século 20.
Hemingway, Steinbeck, John dos Passos, Faulkner, James Agee, Graciliano Ramos e dezenas de grandes jornalistas-escritores são exemplos dessa safra conhecida como “realismo social”. De um lado, a ficção lutando para incorporar o real, o imediato, o contemporâneo, o factual, o calor dos acontecimentos recentes. De outro, o jornalismo se esmerando na cobertura de guerras, como a de Secessão, nos Estados Unidos, a dos Böers, na África do Sul, a Guerra Civil Espanhola e outras.
O “cronismo de guerra”, com grandes repercussões entre os leitores, foi a semente para uma evolução da crônica (no sentido hispânico e anglo-saxão do termo*) para a reportagem de apuração sistemática e verificação plausível, pois, numa guerra, como sabemos, a primeira vítima é a verdade. O livro A primeira vítima, de Phillip Knightley, demonstra isso.
Enquanto na literatura o realismo se encaminhava para uma temática mais social, o jornalismo de reportagens detalhadas se direcionava para métodos um pouco mais refinados de apuração e expressão; e, na década de 1950, os Beatniks sacudiriam o mundo literário com suas “ficções a quente”, em plena febre das vivências e muito próximas da oralidade. Eram ficções mal-comportadas na forma e às vezes delirantes no conteúdo, mas com um fascinante componente de transgressão.
A literatura beat não teve equivalente no Jornalismo. Nos anos 1950, principalmente nos países desenvolvidos, o Jornalismo já estava numa fase de industrialização na qual o mundo das redações parecia se dividir entre os construtores de pirâmides de ponta-cabeça e os construtores de panoramas sociais; entre os com uma visão meio científica da profissão e os que a viam como arte.
O acirramento de ânimos entre essas duas tendências gerou conflitos nas redações de jornais e revistas mundo afora. Mas também fez eclodir um momento histórico importantíssimo do jornalismo de imersão: o New Journalism (Novo Jornalismo), imantado pela capacidade de provocação dos Beatniks e pela efervescência cultural dos anos 1960, quando pessoas de todas as idades estavam nas ruas para lutar contra o Sistema. O Sistema, na época, era o capitalismo e a moral religiosa.
Gay Talese, Norman Mailer, Tom Wolfe foram os principais protagonistas norte-americanos daquele tempo de inquietude geral – na política, nas artes e, inevitavelmente, no próprio jornalismo -, cujos reflexos são sentidos até hoje. Mas o que havia de New, de Novo, naquele New Journalism? Em essência, nada. Aquilo já era feito de maneira bastante arrojada desde o século 19, como eu disse.
O que havia de novo, na verdade, era o fato de que, naquele momento, leitores do mundo inteiro passaram a consumir jornalismo não apenas porque ele era factual, mas porque ele podia ser vislumbrado como um produto de estética prazerosa. O sujeito ia à banca para comprar o texto de Fulano, tanto quanto para comprar o jornal ou a revista tal.
Se comparado aos Estados Unidos, onde o Jornalismo Narrativo está amplamente difundido e praticado sem interrupções ao longo de mais de um século, o Brasil fica bem atrás. Não significa que não tivemos bons momentos ou que hoje em dia isso não ocorra nunca. Ocorre, sim, mas principalmente em revistas, não tanto em jornais diários.
Tivemos momentos históricos importantes. Imitamos com bastante argúcia a prática norte-americana do New Journalism em revistas como O Cruzeiro (na década de 1950), Jornal da Tarde (anos 1970) e Realidade (1966-68). Mas não houve uma prática ininterrupta, não se criou uma cultura de narração de experiências nem um amplo mercado consumidor de histórias jornalísticas.
Vários fatores podem ajudar a explicar essa lacuna: 1) ao longo do século 20 nossa democracia foi frágil, levando-nos a regimes de exceção de tempos em tempos; 2) Em função dos altos e baixos de nossa convicção democrática a imprensa brasileira se acostumou a ser totalmente contra ou totalmente a favor deste ou daquele governo; 3) Déficits de formação universitária adequada à prática do jornalismo de profundidade como complemento às coberturas hard news.
Todos esses fatores, somados a vários outros, são tremendamente nocivos à prática do qualquer forma de Jornalismo, e não seria diferente com a Narrativa. A retomada do regime democrático, a partir de 1985, abriu possibilidades para todas as práticas: a narrativa, a investigativa, a noticiosa, a cidadã etc. Mas, ao contrário do que poderíamos supor, ocorreu o inverso: os jornais brasileiros se restringiram ao noticioso.
Ainda predomina no Brasil o modelo gráfico-editorial inspirado no diário americano USA Today, que se baseia em textos curtos acompanhados de muitas ilustrações, infografias, tabelas didáticas e fotos com legendas que repetem as imagens. Esse modelo parte do princípio de que as pessoas não têm tempo para ler e só lêem por obrigação ou por necessidade específica (profissional, por exemplo).
O sucesso comercial do modelo USA Today, difundido pela Escola de Navarra, da Opus Dei, que deu consultoria para a maioria dos jornais brasileiros nos últimos trinta anos, foi rapidamente assimilado em todo o país e acabou criando um “vácuo narrativo”, como se houvesse uma única maneira de praticar jornalismo: aquela do hard news, do colunismo e das dicas/serviços. Leia também Jornalismo Narrativo (1).
Escrito para uma palestra aos docentes e alunos da Universidade Federal do Ceará (UFC) em abril de 2011.
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