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A IMAGEM DEPOIS DO FILME
O que mudou realmente no fotojornalismo desde o lançamento
em 1989 da câmera digital Fujix, com capacidade para 21 fotos?
Sergio Vilas-Boas
“Jornal da ANJ”, fevereiro/2012
1. O fim de uma era
Mês passado, a Eastman Kodak apresentou pedido de concordata ao tribunal de Nova York. A centenária empresa está com uma dívida da ordem US$ 6,7 bilhões, contra ativos de US$ 5,1 bilhões. Nos últimos oito anos, 47 mil funcionários foram dispensados e seu valor de mercado caiu de US$ 31 bilhões em 1996 para menos de US$ 150 milhões em 2011.
Nos anos 1970, a Kodak desenvolveu a CCD (Charge-Coupled Device) – sistema de captação de imagem que, na câmera digital, exerce função semelhante à do filme nas câmeras analógicas. Poderia ter lançado o equipamento já em 1992, mas optou por não apostar na nova tecnologia, em parte porque os filmes ainda geravam-lhe bilhões em lucros.
“Quando decidiu entrar no mercado digital, estava em defasagem. As rivais Sony, Olympus, Canon e outras estavam conquistando seu mercado. Paralelamente, houve a popularização da câmera digital como acessório básico em celulares”, observa Armando Fávaro, editor assistente de fotografia do Grupo Estado e doutorando em Semiótica na PUC-SP.
Desde a sua fundação em 1881, a Kodak esteve na vanguarda: lançou o filme transparente em 1885, a câmera compacta em 1888 (sob o slogan “você aperta o botão e nós fazemos o resto”) e o filme Kodachrome em 1935. “A invenção do rolo de filme mudou a fotografia, mas a revolução digital atropelou a Kodak”, comenta João Wainer, editor de fotografia da “Folha”.
Em junho de 2009, a Kodak interrompeu a produção do Kodachrome. Os rolos remanescentes foram entregues a Steve McCurry, a pedido dele, que os utilizou em missões na Índia e na Turquia. (As revelações ocorreram no ano ano seguinte no único laboratório especializado – o Dwayne’s Photo, que não mais presta esse tipo de serviço –, na cidade de Parsons, Kansas.)
Entre as últimas imagens feitas por McCurry com o mais adorado dos filmes, está a dele próprio posando ao lado de um Yellow Cab nova-iorquino cuja placa (PRK 36) corresponde exatamente ao código utilizado pela Kodak para identificar o Kodachrome. Estes e vários outros episódios recentes – incluindo o fechamento de agências de fotografia como a Gamma em 2009 – são consequência direta da massificação imposta pelo processo digital.
“Por outro lado, a Magnum, fundada por Robert Capa, Henri Cartier-Bresson e outros, resistiu porque sempre buscou a valorização do profissional”, diz o fotojornalista Erivam de Oliveira, professor da ESPM-SP. “A passagem do analógico para o digital foi crucial para o fotojornalismo”, acredita Fávaro, “e as novas possibilidades surgidas refletiram-se no produto entregue ao público”.
2. adaptações que automatizam
O lançamento em 1989 da câmera digital Fujix, fabricada no Japão pela Fujifilm, com capacidade para 21 fotos, foi o marco de uma nova era. Desde então, o fotojornalismo, da mesma forma que o jornalismo escrito, vem passando por transformações radicais. A primeira experiência de cobertura de um grande evento por fotojornalistas brasileiros equipados com câmeras digitais se deu na Copa do Mundo de 1998, na França.
A praticidade e agilidade proporcionadas pelas câmeras digitais foram – e continuam sendo – as principais razões para que os veículos de comunicação adotem essa tecnologia. Contudo, muito especialistas acreditam que as técnicas e os conceitos da reportagem fotográfica estão em fase de adaptação a “uma possível nova forma de fotografar”.
A grande mudança é a automatização. “Nos anos 1980, você precisava de um portador para levar o filme para a redação a tempo de as fotos serem reveladas, selecionadas e publicadas. Para o envio das fotos já reveladas em laboratório, usávamos aparelhos de telefoto, via telefone”, lembra Alexandre Sassaki, editor de fotografia de “O Globo”.
“Se antes o profissional tinha de garantir ‘A Foto’, assim, maiúscula, hoje tenho de trazer ‘As Fotos’; se antes eu tinha um filme de 36 poses (o que já era muita coisa), agora tenho um cartão de 4GB, no mínimo”, pondera Iana Soares, editora adjunta do núcleo de imagem de “O Povo”. “Essa transformação técnica é uma revolução. Mais: quando o olhar do fotógrafo é mediado por um aparelho, as evoluções na máquina geram mudanças comportamentais também.”
A passagem do analógico para o digital favoreceu o fotojornalismo, na visão de João Wainer: “A internet completou o processo. Então, a conjuntura que está se formando vai fazer com que o fotojornalismo talvez se transforme em algo diferente, especialmente com as câmeras SLR, que filmam e fotografam”. O momento é de incertezas e curiosidades em relação ao que está por vir, tanto quanto pelo que já está ao alcance.
No momento, a Web ainda ecoa o que já era feito no impresso, mas com uma diferença primordial: no on-line é possível publicar fotogalerias, vídeos e ensaios. “No jornal em papel, a gente publicava uma ou duas fotos, em média, para cada matéria. No on-line, você publica pelo menos uma na home, várias no link da matéria e ainda pode montar uma galeria”, compara Sassaki.
A digitalização eliminou o processo químico, que, de certa forma, mantinha o fotógrafo longe do convívio com os colegas jornalistas. Os laboratórios normalmente eram apartados das redações. “Não participávamos intensamente das conversas. Ficávamos entre a rua e o laboratório, tirando e revelando fotos que não sabíamos ao certo como iam sair. Ou seja, trabalhávamos literalmente no escuro”, brinca Sassaki.
3. olhares que brilham
A alta produtividade e a veiculação instantânea também geram dilemas. Dulcília Buitoni, autora de “Fotografia e Jornalismo” (Saraiva, 2011), professora da ECA-USP e da Faculdade Cásper Líbero, passou os últimos dez anos estudando imagens jornalísticas: “Poder deletar fotos em seguida ao clique é uma simplificação importante no processo. Por outro lado, prejudica o pensar sobre a imagem”.
Marcelo Min, repórter fotográfico free-lance de revistas, acredita que na era digital o fotojornalismo corre o risco de perder a força documental de antes, assim como “o seu aspecto de verdade”, em função dos programas de manipulação da imagem: “Os bons fotojornalistas sempre souberam que a fotografia não é ‘a’ verdade, e sim um modo de olhar. Então, o lado positivo da evidência da manipulação é tornar o leitor mais exigente e crítico”.
Para captar esse instante, Bresson dizia, é preciso paciência e intuição. Mas a era da informação, além de iludir o olhar, instituiu a crença de que o tal instante procurado está ocorrendo em tempo real, constantemente. Agora o que se pergunta é se a quantidade e o imediatismo estão alterando o modo de olhar dos fotógrafos. “Se pudermos recriar em computador o ‘instante único’, então será o fim da fotografia. Mas não acredito nisso”, diz Marcelo Min.
Iana Soares, de “O Povo”, acha que esteja sendo formada uma geração de profissionais que darão prioridade à agilidade e à informação: “Mas é exatamente em tempos velozes que a sensibilidade precisa estar mais afiada e aguçada”. A precisão do instante a que se referia Cartier-Bresson ainda é muito importante, na visão dela: “Continuamos sendo protagonistas do ato fotográfico, e escolhemos o nosso momento decisivo”.
Para Erivam de Oliveira, sempre fez parte do trabalho de um fotojornalista a busca permanente por rapidez, informação e estética: “Não raro atingem o ponto de equilíbrio. A foto de Wilton Júnior, vencedora do Prêmio Rei da Espanha deste ano, com a presidente Dilma sendo ‘atravessada’ por uma espada, é um bom exemplo disso”. Wilton Júnior, da Agência Estado, sugere cautela: “A gente tem de controlar a ansiedade antes de enviar o material para a redação”.
4. cidadãos que fotografam
Com a popularização das câmeras digitais e da internet, o volume de imagens possíveis para se editar em um jornal diário hoje em dia tende ao infinito; e quando se pensa que a edição está fechada, aparece um motorista de táxi, por exemplo, com uma foto ainda mais relevante (ou mesmo esteticamente melhor) do que a que havia sido colocada na primeira página. É o que se costuma chamar de jornalismo participativo, ou cívico, muito em voga na era digital.
“Existe uma máxima no fotojornalismo que diz: ‘o cara certo na hora certa’. Hoje, as imagens estão sendo feita por milhões de ‘repórteres fotográficos’, milhões de potenciais leitores dispostos a participar de acontecimentos que possam ajudar a construir a credibilidade do jornal. Se alguém registrou um fato relevante com seu celular, a história terá de ser contada”, afirma Célio Jr., editor executivo de “A Crítica”.
Alexandre Sassaki, de “O Globo”, encara essa onda do “Eu, Fotógrafo” como um avanço positivo no sentido de ampliar a vinculação do leitor com o jornal: “Outro aspecto interessante é que, como não podemos estar em todos os lugares ao mesmo tempo, temos agora mais olhos atentos por aí”. O incentivo à participação do leitor-internauta é resultado da onipresença da tecnologia e da massificação dos dispositivos fotográficos portáteis.
“Frases com ‘envie sua foto’ são cada vez mais frequentes nas páginas dos jornais. O projeto Foto Repórter, por exemplo, já propiciou ao ‘Estadão’ cenas incríveis, em momentos em que era praticamente impossível um profissional do jornal chegar ao local. Acho que a maior lição a ser tirada dessas experiências é que o repórter fotográfico de hoje tem que ser um profissional cada vez mais bem informado sobre o assunto que está cobrindo”, diz Wilton Júnior, da AE.
Ao que parece, os cidadãos incorporaram a produção de imagens ao seu cotidiano. Já não basta apenas fotografar e salvar. Faz-se necessário “compartilhar”. “Existe a especulação de que, em vinte anos, 89% da população será DJ e fotógrafo”, brinca Iana Soares, de “O Povo”, jornal que criou uma seção chamada “Você, Fotógrafo”. “Neste momento de ‘alfabetização visual’, a missão do fotojornalista é instigar a reflexão e desafiar o cidadão a pensar sobre as razões e consequências de se apertar um botão.”
Com tantos potenciais repórteres fotográficos à solta, restam apenas “pautas frias” para os profissionais que precisam se deslocar pelo trânsito caótico das grandes cidades brasileiras para comparecer aos eventos? “Isso se resolve facilmente com cabeças que pensem o tempo todo em um jornalismo mais quente e vibrante”, acredita Célio Jr. “O leitor não pode ser privado de uma informação por razões logísticas.”
Uma foto feita com um iPhone 4S, por exemplo, tem uma qualidade tão boa que dá para abri-la em três colunas na capa do jornal, segundo Sassaki, e os tablets, principalmente o iPad, hoje permitem uma experiência fotográfica superior a qualquer outro suporte: “Nem sempre você chega, mas, quando chega, o seu olhar de fotojornalista tem de entrar na história imediatamente”. João Wainer, da “Folha”, concorda: “Na era digital, dependemos mais do cérebro e menos da sorte”.
5. fotógrafos que escrevem
Procuram-se: fotógrafos versáteis, capazes de transcender o hardnews, transitar por pautas de comportamento, empregar linguagem multimídia, captar imagens em movimento, reportar bem por escrito. Na era digital, a lista de características ideais para um profissional de fotojornalismo é mais extensa e complexa. Célio Jr. se dedicou por mais de vinte anos à função de repórter fotográfico antes de se tornar editor executivo do jornal “A Crítica”, em Manaus. Para ele, fotografar e escrever são funções muito distintas.
“Já aconteceu de eu estar sozinho no lugar certo e na hora certa. Minha atitude, como jornalista, foi registrar o fato com fotografias, e só depois correr atrás da apuração. No retorno à redação, eu passava as informações e contatos para que a editoria responsável destacasse um repórter para pegar mais detalhes”, lembra Célio. “Acho que, salvo raras exceções, é muito difícil fazer as duas coisas bem-feitas ao mesmo tempo.”
A tendência é um dia o fotógrafo escrever mais e o repórter de texto fotografar mais, acredita Alexandre Sassaki, de “O Globo”: “Essa dupla função não é a regra, porém. A maioria dos membros da minha equipe, embora formada em jornalismo, não pratica a linguagem escrita diariamente. Mas há vários que escrevem bem. Para essa combinação dar certo, você tem de considerar duas coisas: o tipo de matéria e o perfil de cada fotógrafo”.
Na equipe da TV Folha há jovens profissionais que escrevem, fotografam, filmam e editam vídeos, segundo João Wainer, editor de fotografia da “Folha”: “Acho ótimo. O leitor ganha e o profissional se valoriza. Com a tecnologia que temos hoje, isso é inevitável, e o saldo, bem positivo. Não acho que a pessoa tenha que fazer tudo ao mesmo tempo, mas estar apto a produzir um texto, um vídeo ou uma foto, quando necessário, é o futuro da nossa profissão”.
“Entrei no curso de jornalismo da Universidade Federal do Ceará porque gostava de escrever e não para ser fotógrafa”, conta Iana Soares. “Descobri a fotografia enquanto cursava, simultaneamente, Ciências Sociais, noutra universidade, e pesquisava os índios Tremembé, uma etnia cearense. Vi na fotografia uma possibilidade de travar diálogos com quem era fotografado. Nessa perspectiva, o diálogo entre texto e imagem me pareceu bem interessante.”
Quem iniciou a carreira de repórter fotográfico já em plena era digital raramente entende de fotografia analógica. A professora Dulcília Buitoni, autora de “Fotografia e Jornalismo” (Saraiva, 2011), acredita que o conhecimento da imagem feita com filme “ajuda a depurar o olhar”. “Ajuda a deixar o profissional digital mais presente, de corpo e alma mesmo, no processo da imagem. Também deveria fazer parte da formação estudar o fotojornalismo de outras épocas.”
“Com filme, era mais emocionante”, afirma Marcelo Min. “A gente lidava com incertezas. Você tinha que ter uma espécie de instinto de pré-visualização, e, mesmo assim, havia muitas surpresas positivas e negativas. Hoje, as câmeras são tão avançadas que se tornou quase uma obrigação captar a melhor imagem possível. Sim, existe uma obrigação, com a digital. Na analógica, havia uma obrigação mais ‘mágica’. Por outro lado, a edição agora está mais nas mãos do fotógrafo do que antes.”
6. linguagem que promete
A era digital está impondo uma nova linguagem ao fotojornalismo? “Nova linguagem, não, porque as técnicas continuam as mesmas. Mas sem dúvida há um fluxo diferente de observação e captação de imagens”, analisa a professora Dulcília Buitoni, autora de “Fotografia e Jornalismo” (Saraiva, 2011). Em lugar de criatividade e reflexão, Dulcília vê o fotojornalismo brasileiro atual se encaminhando para a padronização e a burocracia.
“Compare o que se faz hoje no Brasil com o que se fazia, por exemplo, em revistas como ‘O Cruzeiro’ e ‘Realidade’, ou como ‘Time’ e ‘Newsweek’, que até hoje publicam ensaios fotográficos excelentes. Raramente vemos isso em ‘Veja’, ‘Época’ e ‘IstoÉ’, por exemplo. Quanto aos jornais e seus portais, está tudo muito igual. Até as fotos de maior destaque tendem para uma indesejável semelhança.”
Enquanto os fotojornalistas digitais começam a experimentar múltiplas funções, como escrever, filmar e editar vídeos, além de fotografar, pesquisadores advertem para o risco de a polivalência interferir na excelência de uma das linguagens, o que poderia resultar em “mediocridade”. Para evitar isso, o caminho parece mais de natureza editorial do que técnica: construir narrativas especiais multimídia que escapem à obviedade.
“Como tudo é novo, todo mundo está experimentando e descobrindo processos novos o tempo todo. Contar histórias por meio de fotos é realmente mais fácil hoje em dia”, concorda Alexandre Sassaki. “Há câmeras excelentes para esse fim, como a Canon EOS 5D Mark II, que também te permite filmar com uma linguagem muito próximo à do cinema; e ela usa as mesmas lentes de uma câmera mais convencional.”
Sassaki cita como exemplo o vídeo institucional “Por dentro do Globo” (disponível no site do jornal), feito com essa câmera: “Um fotógrafo hoje é um profissional multimídia com conhecimento também de ‘imagem em movimento’. Mas há uma diferença entre filmar e fazer imagem em movimento. Além de diferentes, essas duas coisas não são feitas (nem ficam prontas) ao mesmo tempo, e a edição envolve a mesma capacidade de síntese do fotojornalismo”.
Para João Wainer, da “Folha”, é a internet, não a tecnologia digital, que está impondo a necessidade de novas linguagens: “De qualquer maneira, a essência é a mesma. Uma boa foto vai ser sempre uma boa foto – em filme, em cartão de memória ou em qualquer outro dispositivo que venha a ser inventado”. “O que não podemos de forma alguma”, acrescenta Wilton Junior, da AE, “é permitir que a tecnologia se torne mais importante que nós, profissionais”.
7. manipulações que desabonam
Repórteres fotográficos nunca foram meras máquinas de apertar botões. As imagens que produzem são resultados da escolha de algumas variáveis, como lentes, velocidades, aberturas, flashs, filtros e, principalmente, enquadramentos. Além disso, todos assumem algum posicionamento “ideológico” diante dos fatos que retratam. Um mesmo assunto pode ser mostrado friamente por um profissional, e de forma trágica por outro, sem ferir os quesitos “autenticidade” e “veracidade”.
No entanto, manipulações intencionais de imagens fotográficas vêm ocorrendo desde os primórdios da história da fotografia. A diferença em relação à era digital é que o que antes era feito em laboratório hoje é realizado em computador, com muito mais recursos e agilidade. “Tecnicamente, a manipulação digital é bem diferente da que se fazia no passado. Hoje é muito mais fácil criar elementos que não existiam na imagem”, diz Célio Jr., de “A Crítica”.
Erivam de Oliveira, professor da ESPM-SP, lembra a celebre frase de Lewis Hine: “Embora as fotografias não possam mentir, os mentirosos podem fotografar”. E outra, do fotógrafo catalão Joan Fontcuberta: “A fotografia mente sempre. Importa saber o que podemos fazer com essa mentira”. “Essas afirmações nunca estiveram tão presentes no cotidiano da fotografia como hoje em dia – nas edições, cortes, adulterações e montagens”, observa Erivam.
A finalidade do Photoshop, que existe há cerca de trinta anos, segundo Alexandre Sassaki, de “O Globo”, sempre foi dar uma tratamento à imagem para que ela pudesse ser impressa no papel com a melhor qualidade possível: “Hoje, o programa está muito avançado. Ele faz com a imagem o que você quiser. Mas quem trabalha com jornalismo precisa de credibilidade. Daí que se você derrapa, é para sempre”.
Wilton Junior, da AE, distingue o fotojornalismo das demais formas fotográficas no que tange ao factual: “Em jornalismo, você não pode, por exemplo, apagar uma pessoa ou mudar a cor do céu. Ou seja, não pode interferir nas informações. Jornais sérios permitem utilizar apenas o mínimo possível das ferramentas disponíveis no Photoshop. Basicamente, as seguintes: cortar, legendar e reduzir o tamanho do arquivo para facilitar o envio da imagem”.
Ajustes “técnicos”, como elevação de contraste e clareamento, têm sido feitos desde que o fotojornalismo existe. Fotógrafos e editores experientes recomendam, então, que o tratamento de imagens – hoje realizado geralmente com o Photoshop – se resuma à simples adequação do arquivo ao padrão de impressão do jornal e à visualização de seus sites. “Caso algumas imagens sejam usadas em infográficos, peças de arte ou montagens, o leitor deve ser informado”, enfatiza Armando Fávaro, da AE.
8. acervos que contam
Os jornais longevos e organizados possuem, de modo geral, acervos de imagens em película, papel e cromo, potenciais fontes de receita. “Com criatividade, os gestores podem aplicar a ‘massa estocada’ em produtos como livros, guias, revistas etc.”, sugere Célio Jr., do jornal “A Crítica”. “As imagens de arquivo são constantemente comercializadas pelas agências de notícias, mas nada impede que jornais que não possuam agência própria também o façam”, completa Armando Fávaro, da AE.
Mas sem a digitalização do material analógico nada é possível. Pensando nisso, os Diários Associados decidiram investir na organização sistemática de seu acervo. O primeiro passo foi a criação da D.A Press, unidade de negócios que substituiu a Meridional Agência de Notícias (primeira do gênero no Brasil, fundada por Assis Chateaubriand, em 1931). Por sua longevidade e por abranger empresas jornalísticas de várias regiões brasileiras, os Diários Associados dispõem de um rico conjunto de conteúdos.
O processo de digitalização das imagens começou em 2003, e desde 2008 as empresas do Grupo compartilham o mesmo acervo, que é mensalmente alimentado por 160 mil imagens, das quais 7 mil, no total, são publicadas entre os 14 jornais associados. “Antes da criação da D.A Press, não existia um canal de compartilhamento, dificultando a integração. Agora, a foto é produzida e imediatamente inserida em um sistema unificado”, diz Vânia Caldas, superintendente da D.A Press, sediada em Brasília.
O sistema conta com três ambientes digitais: o ambiente de cada jornal, o ambiente de compartilhamento do banco de dados e o ambiente de e-commerce (o portal www.dapress.com.br), que contém fotos, gráficos, charges, caricaturas, ilustrações etc. “São três ambientes na mesma ferramenta”, diz Vânia. A imagem é inserida pelos profissionais de cada jornal, responsáveis também pelo fornecimento de dados como data, evento, contexto e nome de personagens.
A equipe D.A Press entra na segunda etapa, a da classificação (detalhamento do contexto temático) e indexação (quando são criadas as tags e palavras-chaves que possibilitam o uso da foto ou ilustração em contextos diferentes daquele em que foram produzidas). “Desde agosto de 2009 estamos comercializando imagens, concorrendo com players consagrados como Folhapress, Agência Estado e Agência Globo”, diz Vânia.
O antigo acervo em película dos jornais e revistas do Grupo ainda não está totalmente digitalizado. “No momento, atendemos sob demanda ou digitalizamos proativamente algum material que possa ser solicitado em função de eventos de grande repercussão, como uma Copa do Mundo ou desastres aéreos em cadeia, que exigem um painel de imagens históricas.” A D.A Press, hoje, é autossuficiente, garante Vânia.
Os jornais que mais compartilham imagens com as empresas do Grupo e que mais fornecem material para e-commerce são “Correio Braziliense”, “Estado de Minas” e “Diário de Pernambuco”, pela ordem. Os principais clientes externos são as editoras de livros didáticos. “Num contexto em que notícia é commodity, pois todo mundo a produz, o mesmo não ocorre com conteúdos analógicos antigos, pois somente uns poucos produziam e os detinham.”
9. imagens que desconcertam
Por sua subjetividade intrínseca, o fotojornalismo envolve dilemas éticos que às vezes resultam em (ou provêm de uma) tragédia. A foto feita em 1993 no Sudão pelo fotógrafo sulafricano Kevin Carter – publicada pela primeira vez no “The New York Times” em março daquele ano – é um exemplo paradoxal. A imagem mostra uma criança cadavérica, sem forças para continuar rastejanado até um acampamento da ONU, a um quilômetro dali, e espreitada por um urubu.
Por outro lado, para a crítica especializada, ele merecia todos os cumprimentos por seu profissionalismo e objetividade. Analistas defenderam que Carter estava dando uma contribuição ao mundo ao mostrar a condição extrema de um ser humano imaturo e indefeso, que, em vez de satisfeito em sua necessidade mais básica, corria o risco de se tornar alimento de um abutre.
“Essa foi a minha foto de maior sucesso, depois de dez anos como fotógrafo, mas não quero pendurá-la na parede. Eu a odeio”, ele declarou à revista “American Photo”. Meses depois de conquistar o Prêmio Pulitzer de 1994, entrou em depressão e suicidou-se. “Estou sendo perseguido pela memória viva de matanças, cadáveres, cólera e dor… Por crianças famintas ou feridas… Por homens loucos com o dedo no gatilho, muitas vezes policiais, e assassinos…”, escreveu em sua carta de despedida.
10. fotos que são páginas
No jornalismo, a imagem de peso e consistência às vezes por si só conta a história, sem necessidade de texto explicativo. Capas de jornal com foto de página inteira constituem momentos marcantes da reportagem fotográfica brasileira, como a do garoto chorando a derrota do Brasil para a Itália por 3 a 2 na Copa do Mundo da Espanha, que foi publicada no “Jornal da Tarde” em 6 de julho de 1982; ou a da silhueta de Fidel Castro em contraluz na época de sua renúncia ao governo, feita por Javier Galeano, da AP, publicada no “Correio Braziliense”.
“O ‘Jornal da Tarde’ estourava grandes fotos na capa. Já vi publicação até com fotografia em página dupla, usando a capa e a contracapa. Era lindo ver essas ‘capas duplas’ expostas nas bancas de jornal. A era digital não impede que isso continue sendo feito, eventualmente”, diz Célio Jr., repórter fotográfico por mais de vinte anos e hoje editor executivo de “A Crítica”. “Mas não se pode isolar demais a imagem em relação ao conjunto.
Veja, por exemplo, o World Press Photo dos últimos anos. Por dois anos consecutivos as fotografias vencedoras daquele ‘prêmio maior’ precisaram de um texto para que fossem compreendias. Sozinhas, elas não transmitiam o principal.”
11. imagens que movimentam
A professora Dulcília Buitoni, autora de “Fotografia e Jornalismo” (Saraiva, 2011), considera o argentino “Clarín” um dos melhores exemplos de jornalismo multimídia: “O tratamento das fotos é sofisticado e os documentários audiovisuais, excelentes. Não temos algo similar no Brasil. Afora o noticioso, o que vemos com mais freqüência aqui são as galerias de imagens, vídeos esquisitos e flagrantes de celebridades. Ainda impera no nosso fotojornalismo a crença de que só o instantâneo tem importância e valor. Mas é preciso um equilíbrio entre o conteúdo bem planejado e o conteúdo oportunista”.
As galerias de imagens, por outro lado, muito comuns no Brasil, primam pela quantidade, sem que haja um acréscimo relevante de informações de uma foto para outra, na visão de Dulcília: “Publicam-se toneladas de fotos, indiscriminadamente. Calcula-se que, hoje, os editores de um jornal avaliem 7 mil fotos diariamente, para que, no fim das contas, publiquem uma imagem quase igual à do concorrente”. Marcelo Min, fotógrafo free-lance, acha que essas galerias com muitas imagens repetitivas são reflexo de uma tendência a tratar a informação em termos de volume, sem considerar a relevância e a complexidade do evento.
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