“Mr. Invisível do Brooklyn”, reportagem biográfica de Sergio Vilas-Boas sobre Paul Auster (1947-2024) publicada em 1999 no caderno “Fim de semana” da “Gazeta Mercantil” e incluída na terceira edição da coletânea “Perfis: o Mundo dos Outross: 22 Personagens e 1 Ensaio” (2014).
O dinheiro pode calar megafones, ideais e sonhos. Sabemos que a arte e o jornalismo cultural também não escapam da performance comercial. Bilheterias e listas de bestsellers são o principal termômetro do sucesso. A percepção de que o dinheiro é praticamente o padrão de medida para tudo foi muito importante na formação do escritor americano Paul Auster, autor de A trilogia de Nova York (1985) e diretor do filme O mistério de Lulu (1997). Foi o que lhe deu um certo senso de rebeldia contra a face insensível do país mais consumista do planeta.
– O dinheiro é sempre mais identificável por sua ausência do que por sua presença. Acho que ele é útil apenas para poder nos ajudar a não pensar nele – diz.
Os problemas financeiros de Auster foram gritantes principalmente a partir dos seus 20 anos, quando resolveu entrar para a marinha mercante como marujo em um navio petroleiro, até por volta dos 32, quando seu pai faleceu. Antes disso, grana era uma questão filosófica.
Paul vem de uma típica família pequena de classe média americana. Uma família aparentemente comum, como a maioria das famílias. Seu pai, Samuel Auster, era um promissor técnico em radiocomunicação que trabalhou no laboratório de Thomas Edison em Menlo Park, Nova Jersey, durante um único dia de 1929. Consta que foi dispensado no dia seguinte, quando Edison soube que Sam era judeu.
Em seguida, a Bolsa de Nova York quebrou, mas o pai de Paul tinha alguma poupança e aplicou-a numa modesta loja de componentes eletrônicos em Newark, que acabou sendo transformada em uma loja de mobílias. Sam Auster vivia à procura de negócios rentáveis. Juntou boas quantias como corretor de imóveis.
Até 1947, ano em que Paul nasceu, a situação de Sam era instável para os padrões americanos. Apesar de tudo, nem Paul, nem sua única irmã (três anos mais jovem que ele) conheceram fome, frio, ameaças ou ignorâncias. Tampouco passaram as necessidades da maioria das famílias brasileiras na mesma época.
O que transformou a visão de Paul com relação a dinheiro e que o forçou a ir à luta sozinho, a princípio sem sucesso, foi o modo como seus pais lidavam com as próprias demandas. Sam era pão-duro, paranoico com crashs e recessões. Antes de emigrar para os EUA, passara maus pedaços em Stanislav, no Leste Europeu. A lembrança dos tempos de pobreza o perturbaria durante toda a vida.
Já a mãe de Paul, Queenie, era esbanjadora. Ela achava que devia celebrar o desaperto comprando objetos de todo tipo, enchendo vários carrinhos de supermercado. “Para ela, entrar numa loja era dar início a um processo alquímico que atribuía à caixa registradora uma série de propriedades mágicas e transformadoras”, escreveu o filho em Da mão para a boca: crônica de um fracasso inicial (1996).
– A tragédia da coisa é que os dois eram pessoas boas. Atenciosas, honestas, trabalhadoras. Fora esse único campo de batalha, pareciam se dar bastante bem.
– Deve ser difícil para uma criança compreender pais com uma relação tão ambígua com dinheiro. De um lado, o desejo intenso de ganhá-lo; do outro, uma recusa persistente em desfrutá-lo. Como você, hoje, encara aquele duelo?
– Nunca consegui entender como algo tão sem importância podia causar tanta discórdia. É claro que dinheiro nunca é apenas dinheiro. É sempre outra coisa, algo maior, e é sempre ele que diz a última palavra.
– Seus pais foram felizes juntos?
– Não, e minha mãe levou muito tempo para reconhecer o engano que cometera. Quando eu tinha 15 anos e a minha irmã, 12, eles se divorciaram.
– Você passou muitos apertos financeiros depois disso, em parte por causa das opções que fez, tentando se virar sozinho, apartado. Como estão as coisas hoje?
– Alguém certa vez disse que as histórias só ocorrem com aqueles que são capazes de contá-las. Do mesmo modo, quem sabe, as experiências se apresentam àqueles que são capazes de vivê-las. Nos últimos dez anos, tenho sido capaz de sustentar meu trabalho e minha família. Mas nem tudo está resolvido.
TRILOGIA DE NOVA YORK
Por volta dos 20 anos, portanto, Auster decidiu ganhar a vida de um modo que lhe permitisse escrever. Em 1971, aos 23, mudou-se para a França com planos de ficar um ano. Ficou quase quatro. Foi o caminho encontrado para estar longe de seu país num momento particularmente complicado, em que sociedade e governo se desentendiam a céu aberto.
– Os EUA viviam a Guerra do Vietnã. Eu estava muito contaminado politicamente e não conseguia escrever. Então, achei que a melhor maneira de me concentrar seria encontrando um espaço para respirar.
Na França, trabalhou como jardineiro, tradutor francês-inglês, revisor de catálogo de livraria, ghostwriter e telefonista noturno na sucursal do The New York Times (em Paris), entre outras atividades. Um período de grandes dificuldades. Entre uma turbulência e outra, tentava escrever poemas, sua maior paixão na época.
A obstinação pela literatura já estava transformando-o em um destituído na Europa quando surgiu a imperdível oportunidade de emprego como caseiro de uma fazenda na Provence, o que lhe proporcionaria uma “renda minúscula”, como ele conta. O mais interessante do novo emprego, entretanto, era incluir moradia gratuita.
– Isso era fundamental. Mas também acabou chegando o dia em que eu e minha namorada não tínhamos praticamente nada pra comer. Tudo o que pudemos encontrar na fazenda foi uma torta crocante pré-pronta e um saco de cebolas. A torta ficou muito saborosa, a melhor que já comemos, exceto pelo fato de que não estava suficientemente quente. Então nós decidimos aquecer a torta de cebola um pouco mais. Quando a tiramos do forno, estava queimada. Foram horas de desespero, pois já estávamos no nosso limite. Então, de forma totalmente inesperada, apareceu um sujeito que de vez em quando se hospedava na fazenda. Ele nos repassou algum dinheiro e pudemos fazer uma refeição decente.
Paris representou uma virada na vida de Paul. Enquanto tentava escrever poemas e ensaios literários, submetia-se a ligações “degradantes, algumas humilhantes”, com pessoas apenas para poder adquirir o mínimo necessário para a sobrevivência. A França não seria sua residência nem qualquer outro país que não os EUA. Talvez nem mesmo outra cidade que não Nova York ou outro bairro que não o Brooklyn, onde se instalou em 1980, depois da morte do pai, e não saiu mais.
Mesmo tendo nascido em Newark – cidade poluída, violenta e feia a 30 minutos de trem de Manhattan –, Auster se dedica a Nova York como James Joyce a Dublin. Na Trilogia de Nova York, a vida anônima na megalópole, acrescida dos diferentes modos de vida entre Manhattan e Brooklyn, torna seus personagens cada vez mais isolados e em busca de uma identidade.
Mas o caldeirão multicultural nova-iorquino, tão presente na Trilogia, não é onipresente em sua obra. Muitos de seus livros – como No país das últimas coisas (1987), Música do acaso (1990) e Mr. Vertigo (1994) – nem sequer transitam pela turística Brooklyn Bridge, uma das vias de ligação entre sua casa a Manhattan.
O Brooklyn, com 2,5 milhões de habitantes, é um dos cinco grandes distritos que compõem a Grande Maçã. Para Auster, o mundo passa por Manhattan, mas mora no Brooklyn, o verdadeiro lugar de todas as raças, todas as etnias e todas as religiões.
No Brooklyn, caribenhos e russos, judeus e italianos, árabes e haitianos cruzam diariamente as fronteiras dos bairros residenciais de Brooklyn Heights e Park Slope – “o outro Brooklyn”, como Paul chama a região. Em sua casa de tijolos marrons aparentes, moram Siri Hustvedt, sua segunda mulher, e a filha Sophie.
Park Slope ladeia o verdejante Prospect Park. O bairro acolhe inúmeras edificações em estilo vitoriano, ornamentadas por torres do século XIX, arcadas neorromanas, portais barrocos e escadarias que remetem aos palácios de Veneza. Ou seja, uma região de intensa mescla de estilos e culturas.
– Aqui vive também um percentual bem pequeno de escritores judeus não praticantes – autoironiza.
ACASOS E COINCIDÊNCIAS
Um dos episódios mais importantes na vida de Paul foi a morte de Sam Auster. No sentido mais profundo e inabalável, Sam foi um homem invisível aos olhos do filho. Invisível para os outros também, e muito provavelmente invisível para si mesmo. Depois do divórcio, Sam viveu sozinho durante 15 anos. “Obstinadamente, opacamente, como que imune ao mundo.”
Na época, Paul atravessava um momento bastante difícil financeira e existencialmente. Tinha um filho pequeno, Daniel (com a tradutora Lydia Davis, primeira esposa), um casamento em desintegração e uma minúscula renda que não chegava a uma fração do que precisava para viver. Transtornado, ficou quase um ano sem escrever uma linha. Não conseguia pensar em nada a não ser dinheiro.
A atração pelo beisebol, contudo, o fazia entortar o pescoço para ver as manchetes das páginas de esporte do jornal lido por algum passageiro do metrô. Até hoje vai muito a jogos de beisebol. Naquele ano de especial dureza econômica (1979), inventou um jogo de beisebol em forma de baralho, na ânsia de conseguir algum dinheiro. Tentou vender o jogo para várias empresas americanas. Em vão.
– Aquelas cartas só serviram mesmo pra eu brincar com Daniel.
Em dezembro de 1978, foi convidado por um amigo para ir a um ensaio aberto de balé, e algo estranho aconteceu. Uma revelação, uma epifania. Paul não sabe exatamente qual a melhor palavra para descrever o momento em que grudou os olhos nos bailarinos.
– O espetáculo me inundou de uma imensa felicidade. O simples fato de observar homens e mulheres se movendo através do espaço me inundou de algo próximo da euforia.
No dia seguinte, sentou-se à escrivaninha e começou a procurar uma “voz” para traduzir, em palavras, o sentido de sua experiência com o ensaio de balé. Foi uma libertação. Convenceu-se de que ainda era escritor, apesar de todas as turbulências e bloqueios.
– Mas não um escritor como antes. Um período novo estava prestes a começar. Eu sentia isso.
O telefone tocou às 8 horas de 14 de janeiro de 1979, precisamente o dia em que Paul terminou o texto sobre o balé, um conto ensaístico intitulado “Espaços brancos”. Um de seus tios informava-o de que Samuel Auster havia sofrido um ataque cardíaco fulminante durante a madrugada.
– Acha que tudo pode ter acontecido no exato instante da madrugada em que você finalizava seu primeiro texto em prosa após um ano de jejum?
– Sinceramente, acho que sim.
Os acasos, as sincronias e as coincidências são os princípios governantes da obra de Paul Auster. Ele tem sido muito criticado por causa disso, aliás. Dizem que ele usa a coincidência, por exemplo, para atenuar as coisas, para criar uma ilusão de que tudo pode ser explicado ou para disfarçar seus defeitos de fabulador.
– Na verdade, esses críticos não estariam tentando lhe dizer que você banaliza o uso do acaso e das coincidências em suas histórias?
– O acaso faz parte da realidade. Somos continuamente moldados pelas forças da coincidência. O inesperado ocorre com uma regularidade quase entorpecedora nas vidas de todos nós.
– Não é o seu caso, creio, mas a ficção de má qualidade sempre foi mestre em criar tramas e soluções artificiosas, que tentam amarrar todos os elementos, que forjam finais felizes…
– De fato. Mas quando falo de coincidência, não estou me referindo a um desejo assumido de manipular. Refiro-me à presença do imprevisível, à natureza totalmente desconcertante da experiência humana. De um momento para outro, tudo pode acontecer. Em termos filosóficos, refiro-me aos poderes da contingência. Nossas vidas não nos pertencem realmente. O desconhecido nos surpreende a cada momento. Vejo que minha função é me manter aberto a essas colisões, ficar alerta para todos esses mistérios.
O modo como Paul relembrou o dia da morte de seu pai é um sinal desse seu estado de alerta para as sincronias que tanto nos intrigam. Mas, afinal, por que a morte de Samuel Auster alterou para sempre a carreira do jovem escritor de 32 anos, que não havia conseguido publicar nada em prosa até então? Simples. O pai lhe deixara uma herança.
– Não foram rios de dinheiro, comparada com outras heranças, mas fez uma enorme diferença. O bastante pra mudar minha vida pra sempre. O dinheiro me deu proteção. Pela primeira vez na vida, dispus de tempo para escrever, para assumir projetos longos sem ter de me preocupar com o aluguel e outras contas.
– Seus principais livros resultaram do dinheiro deixado por seu pai?
– Sim, com isso ganhei dois ou três anos de fôlego, o suficiente para me firmar.
– É uma equação um pouco cruel. Foi preciso que alguém morresse para que você deslanchasse. Você pensa nisso?
– Não consigo sentar e escrever sem pensar nisso. A morte de meu pai salvou a minha vida.
Três anos depois, aos 35, Paul Auster veria seu primeiro livro em prosa ser publicado: A invenção da solidão (1982), composto de duas novelas. A primeira delas, “Retrato de um homem invisível”, é uma tentativa de entender um personagem arredio, opaco, “um bloco de espaço impenetrável na forma de um homem”: “O mundo ricocheteava nele, se espatifava de encontro a ele, às vezes aderia a ele – mas nunca entrava. Durante quinze anos meu pai assombrou uma casa enorme, completamente sozinho, e foi nessa casa que ele morreu”.
– Este homem é Sam Auster, seu pai. Afinal, conseguiu dar a ele um outro significado?
– No ato de tentar escrever sobre meu pai, comecei a perceber como é problemático presumir que se sabe algo sobre outra pessoa. Uma questão central daquela novela é a biografia. Perguntava-me a todo momento se, de fato, é possível uma pessoa falar em nome de outra.
DA MÃO PARA A BOCA
Da mão para a boca (1996) é uma espécie de ensaio sobre como escrever livros e, ao mesmo tempo, ganhar dinheiro para bancar as despesas pessoais. No livro, Auster claramente procura evitar dois perigos constantes em textos autobiográficos declarados: a autoexaltação e a autocomiseração.
– Não me interesso por literatura confessional ou autobiográfica. A invenção da solidão e Da mão para a boca são os únicos que escrevi com essas características. Mesmo assim, considero o segundo um ensaio sobre como não ganhar dinheiro, ou sobre como tomar decisões erradas.
Acredita-se, não sem uma alta dose de razão, que todo escritor empresta muito de si mesmo à composição de seus enredos e seus personagens. Mas o autor de Mr. Vertigo emprega elementos autobiográficos explicitamente. Alguns personagens têm nomes que são de amigos e familiares do escritor.
A Trilogia de Nova York, sua obra mais aclamada e mais debatida em universidades, é composta das novelas “Cidade de vidro”, “Fantasmas” e “O quarto fechado”. As três fazem paródia da literatura de mistério e são distintivas das fusões e confusões que Auster gosta de fazer entre criador e criatura.
Em “Cidade de vidro” – que, separadamente, foi rejeitada por 17 editoras –, Daniel Quinn, autor de romances policiais, recebe o telefonema de alguém procurando um certo detetive particular chamado Paul Auster. Quinn decide encarnar o papel do detetive e os conflitos de identidade dos dois se misturam aos do personagem Peter Stillman, a quem o “impostor” deveria proteger:
“Lembrar quem se supõe que eu seja. Não acho que se trate de um jogo. Por outro lado, nada está claro. Por exemplo: quem é você? E se você acha que sabe, por que continua a mentir? Não tenho resposta. Tudo o que posso dizer é o seguinte: ouçam-me. Meu nome é Paul Auster. Este não é o meu nome verdadeiro”.
Já em “Fantasmas”, o detetive Blue é contratado para seguir e vigiar Black, um escritor que quase não sai de casa e passa praticamente o dia todo escrevendo. A vigilância desencadeia uma viagem psicológica ao interior de Blue.
Em “O quarto fechado”, por sua vez, outro escritor, este chamado Fanshawe, desaparece misteriosamente, e sua esposa pede a um velho amigo do marido que avalie originais engavetados. O narrador-protagonista, crítico literário, analisa-os e decide publicá-los. Os livros de Fanshawe se tornam um sucesso e sua mulher se casa com o crítico. Começam as suspeitas de que o crítico é o próprio autor dos livros. Para driblá-las, o crítico então resolve escrever a biografia do “gênio” Fanshawe. Por fim, recebe do próprio uma ameaça de morte, feita por carta.
Segundo Auster, suas escolhas são uma questão de “plausibilidade e sinceridade”.
– Quando escrevo sobre problemas que eu próprio experimentei, consigo fazê-lo com certa convicção, de uma maneira que apaga a fronteira entre ficção e realidade. Isso não torna um livro melhor nem pior. É apenas um campo que gosto de cultivar. Mas nunca me revelei em minhas ficções.
Há uma parcela vívida de Auster em cada um de seus personagens, sujeitos em crise permanente. Seus heróis (ou anti-heróis) são levados a se separar geograficamente dos demais. É como se se relacionassem por uma espécie de canal artístico, em que a arte, especialmente a literatura, exerce um papel fundamental na comunicação.
Há muitos andarilhos sobrevivendo nas histórias de Auster, sujeitos que experimentam situações-limites, como se estivessem se submetendo a um teste, caso de Fogg, em Palácio da Lua, e Willy, em Timbuktu. Não precisariam viver na corda bamba, mas optam por esta forma de vida talvez guiados pelo que gostariam de ser ou pelo que realmente pensam que são.
– Para mim, não há situação mais extrema do que um andarilho sem uma casa pra voltar.
Mergulhados no isolamento, os protagonistas tentam encontrar respostas e soluções para suas crises e aprender com o desafio da busca. E aprendem, na maioria das vezes, com o ato de escrever sobre algum mistério psicológico desconhecido. De modo geral, não atingem a solução. O desafio e o esforço apenas agravam a crise e os conduzem à perda da identidade.
– A natureza do que eu faço é quem sou.
CORREDORES DO CINEMA
Inspirador, eclético, reservado, nada ostensivo, quase anônimo em seu Brooklyn pessoal, Paul Auster tornou-se um dos mais cultuados autores americanos de sua geração. Nos últimos anos, enveredou-se também nos corredores do cinema. Estreou assinando o roteiro de Cortina de fumaça (1995), dirigido por Wayne Wang. No mesmo ano, Auster e Wang dividiram tudo – da escolha do elenco à direção – em Sem fôlego, continuação do filme anterior.
O mistério de Lulu é o primeiro filme que concebeu e dirigiu integralmente. Tudo saiu de sua cabeça. Trata-se da história de um músico de jazz em decadência que transforma a própria vida numa bagunça. Certa noite, enquanto tocava, é brutalmente baleado por um maluco que invadira o jazz club. Os ferimentos invalidam o músico, que não pode mais tocar seu instrumento. O resto da história gira em torno da tentativa do mesmo de começar uma nova vida.
O filme também se confunde com a obra literária de Auster, gerando a suspeita de que a história funcionaria melhor em livro do que na tela. Ele discordou de imediato:
– Não. Até tentei fazer dela um romance, mas não deu certo. A história não me deixava em paz e eu tinha que arrumar um jeito de contá-la. Quando a recuperei, voltei ao primeiro propósito, que era um roteiro. Hoje, não consigo nem imaginá-la em livro. Ela precisava ser visualizada.
– Seu encantamento pelo cinema decorre da literatura ou o contrário?
– Algum dia sonhei ser cineasta, não escritor. Já adulto, porém, percebi que minha personalidade não servia ao cinema. Sou muito quieto, portanto, mais adaptável à escrita.
– Você disse que ambas as atividades – cinema e literatura – são desafiadoras. Elas têm diferentes graus de dificuldade?
– Em literatura, tudo são palavras; no cinema, você trabalha também com arte, música, som, linguagens, que me interessam muito. Mas escrever é a minha praia.
– Trabalha com disciplina? Escreve com facilidade?
– Com disciplina, sim. Mas com dificuldade. Costumo dizer que escrever é como arrancar um dente todo dia.
O cinema se transformou na sua forma de expressão coletiva, do mesmo modo que para o espectador. Os livros, uma experiência privada, circunspecta. As múltiplas atividades de Auster, na vida real e no trabalho, lhe conferiram uma maleabilidade sobre a qual nunca refletiu. No entanto, recusa a imagem do artista múltiplo.
– Nunca me perguntei, por exemplo, o que ganho ou perco me dividindo, às vezes, entre a literatura e o cinema. Em dado momento da vida, a gente sabe o que pode ou quer realizar. E, com uma certa dose de sorte, realizamos.
– Por que prefere alimentar uma visão despretensiosa de si mesmo?
– Porque sou um contador de histórias. Nada mais.
CLINTON E MONICA
Daniel é filho de Paul com Lydia Davis, primeira esposa. Daniel se dedica à fotografia. A filha Sophie é da atual esposa, Siri Hustvedt, escritora descendente de noruegueses. Sophie é a atriz precoce da família. Ela interpreta a filha do produtor em O mistério de Lulu, e o pai acorda cedo todos os dias para caminhar com Sophie até a escola onde ela estuda.
Explorar Nova York a pé, possibilidade que tanto facilita a vida dos milhares de turistas que circulam por suas ruas diariamente, encanta também o escritor-residente – o Mr. Invisível – do Brooklyn. Auster continua contemplativo em relação à cidade e adora descobrir detalhes especialmente na ponta sul de Manhattan. É onde procura renovar sua imaginação.
– Você disse que Nova York está [em janeiro de 1999] mais atraente e segura do que há dez anos. Isso é obra do prefeito republicano Rudy Giuliani?
– Ele fez muito. Mas as razões são mais complexas. Têm a ver também com toda a economia americana. Se ela vai bem, a violência diminui, invariavelmente.
– Já votou em republicano alguma vez?
– Nunca.
– Está satisfeito com os democratas da era Clinton?
– Não, mas dadas as alternativas… De qualquer forma, é impensável, pra mim, levar os republicanos em consideração.
Se dependesse de Auster, o impeachment de Clinton [relativo ao escândalo envolvendo o ex-presidente e a ex-estagiária da Casa Branca Monica Lewinsky] ficaria para uma “situação mais concreta e menos fingida”.
– Esse julgamento é uma das coisas mais hipócritas que já vi. É a cara do que somos. Como autor, prefiro me comprometer mais com a verdade e menos com a política.
De volta da caminhada até a escola de Sophie, Auster entra em casa e põe-se a trabalhar com caneta, papel e uma máquina de escrever manual velha até as três ou quatro da tarde. Recusa a unanimidade em torno do computador, embora não tenha muitos dados para julgá-lo.
– Nunca experimentei um, portanto não sei se facilita ou não a minha vida. Tento manter uma rotina calma e previsível.
“QUEM SOU EU?”
A pergunta “quem sou eu?” é outra preocupação constante na obra de Paul Auster. Ele se deixa fascinar pelo desequilíbrio entre o cidadão que escreve, o indivíduo que grava seu nome na capa do livro e o verdadeiro autor. Os três são a mesma pessoa?
– Me parece que as histórias são escritas de um certo lugar em nosso interior, um lugar desconhecido e inacessível. Por essa razão, nunca a biografia e a obra de um escritor estão em acordo. Nenhum estudo biográfico jamais conseguirá dizer exatamente de onde vem o conteúdo que ele põe no papel.
– É como se uma biografia só fosse possível pela combinação de fatos com meditação sobre as (im)possibilidades da escrita biográfica…
– Precisamente.
Os acadêmicos tomam Trilogia como ponto de partida para discussões sobre literatura pós-moderna. Inúmeros artigos e teses versaram sobre o tema, mas Auster procurou manter-se fora dos debates. Trilogia foi provavelmente o primeiro livro que chamou a atenção das pessoas para seu trabalho.
– Ao longo da vida, aprendi que há um fã para cada livro publicado no mundo. Quando escrevo, penso num leitor imaginário, que sou eu mesmo.
– Você se preocupa se as pessoas estão lendo seus livros?
– Claro que me preocupo. Tenho que me preocupar. Mas há tantas interpretações possíveis quanto leitores para um mesmo livro.
– O objeto livro está em extinção?
– Não, e lhe digo por quê: a leitura é uma das raras experiências humanas em que dois estranhos se encontram numa situação de suposta intimidade. E é por isso que ainda descobrimos um pouco de humanidade nesse tipo de experiência. É insubstituível. Trata-se de um importante elemento para estar vivo; abrigo um para o outro, num nível profundo e aberto. [1999]
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