É cada vez mais intensa a luz que incide no ambiente do meu clone, que acaba de acender um cigarro
Sergio Vilas Boas
O vento perturbou o sossego das folhagens, como um despertador perturba qualquer homem que se deite pelo menos meio-bêbado. Minhas pálpebras também se impacientaram. Ergui-me tão preguiçosamente que custei a perceber a estranheza de certas coisas. Meu quarto: transformara-se em jardim. O quê?
O piso de tábuas corridas fora substituído por grama verdinha e úmida; grilos cor de musgo saltavam adiante, trinando loucamente; onde ficava o guarda-roupa implantou-se um canteiro de acácias cercado de pequenas ripas pintadas de branco-neve, alinhadas geometricamente.
A mesa e a estante de livros, mais à direita, viraram pé de jacarandá. Impossível ver a copa da árvore, porque a escuridão engolira os galhos, enredando uma inexplicável fusão. Saúvas agora passeiam pelo casco frondoso carregando cacos de folhas de laranjeira, numa operação ruidosa.
Respirei fundo, esfreguei os olhos. Pousei as duas palmas sobre um espaldar. Estiquei o corpo. Alinhei o dorso. Ouvi estalidos de vértebras aquém da algazarra saltitante dos grilos. Com as digitais, senti a superfície rígida e envelhecida. Arranhões, protuberâncias e nomes foram gravados ali com ponta metálica.
Vi a mim mesmo em cima de um banco de praça, desses de madeira. A estrutura do banco era uma forja grosseira. Adquiriu uma coloração de abóbora passada. Apalpei o banco e impus força perpendicular, checando se de fato estava firme. A peça pública range como dobradiça deslubrificada, mas suporta a turbulência momentânea.
De pé, sinto nas solas o frescor do suor noturno. A luz que infiltra pelos galhos do jacarandá me serve de bússola. O abajur me repudia com um espetão. Sugo a bolha de hemoglobina na ponta do dedo. Caules de rosas brancas, repleto de espinhos pontiagudos, substituíram o criado-mudo… Cacete!
Pétalas sedosas cobrem parte do tapete gramado. Misturados a elas, arabescos à mão. Ambos, papéis e desenhos, são idênticos aos que a minha ex-mulher usava nos cartões de natal artesanais fabricados para pessoas jurídicas.
Me aproximo da cerca de ripas e observo o novo cenário. É como se eu estivesse podendo visualizar o amanhã fundido ao ontem. Algo assim, desse jeito. Se eu próprio não soube o que imaginar, imaginem nós, narradores, que apenas somos usados para nos construir a nós mesmos de maneira fugidia?
Na moldura da janela da casa vizinha um homem está sentado à mesa. A luz ao redor dele insinua mais do que ilumina. Ele dirige ao tronco de jacarandá um olhar deserto, com a imprecisão inevitável de quem observa, desolado, o deserto. Alguma folha caída? Alguma saúva, pétalas ou caules espinhentos?
Não, mas tudo tem um apelo muito familiar. E ainda por cima zunem carros velozes cujas luzes em instantes inflam as pupilas. Sinto-me dentro de cada feixe, de cada onda de luz, até que consigo encarar o supra-existente. Sobre a mesa de meu clone repousa uma garrafa de conhaque Napoleon com um copo de vidro enfiado no gargalo de boca para baixo.
Só de roçar o pé na grama, titubeante, já consigo diferenciar das pétalas as bolinhas de papel-manteiga (cartões com arabescos embolados, na verdade). É cada vez mais intensa a luz que incide no ambiente do meu clone, que acaba de acender um cigarro.
Se eu e o narrador deste conto-sonho fôssemos a mesma pessoa – nunca somos, na verdade, bem sei –, acho que primeiro tentaríamos decifrar a fisionomia um do outro e depois talvez investigássemos o que aconteceu com meu quarto, minha cama, meu sono, a minha vida de idoso ultimamente tão apartada dos velhos prazeres.
O meu clone levanta-se, abre com destreza a garrafa de Napoleon, enche o copo, deixa o maldito líquido espesso acomodar-se no fundo. Nada de sulcos ou arrepios. Grilos insistentes beliscam meus pés; formigas demarcam um semicírculo ao meu redor. O clone finda o trago de Napoleon. Nas lentes de meu binóculo imaginário surge uma segunda garrafa. Tremem as mãos do clone.
No chão, um pedaço de cartolina. De um lado, letras sublinhadas com salientador amarelo como ondas sutis de mar calmo; do outro, uma foto de Ana, minha Ana. Ana? O papel-manteiga usado nos cartões de Natal foi o único pertence que ela não levara desde que partiu no dia exato de meus setenta anos desvividos.
O gradualmente reconhecido supra-homem abre a gaveta do criado-mudo, onde, em vez de caules espinhentos, repousa uma pistola Rugger, semi-automática. Apanha-a. Encaixa o pente de balas, bafora no cano cromado, lustra-o com a flanela flácida do pijama xadrez. Deixa a Rugger sobre o mesa, em repouso. E caminha, a garrafa em uma mão, o copo na outra.
Ademais, a noite fulgura. Estrelas reais cravejam o céu como em qualquer céu de qualquer lugar, real ou imaginário. Álvaro inala aromas doces de flores e matos. A relva exala-os; o ar concentra-os; a atmosfera devora-os. O meu clone se acomoda na cadeira, comtemplando a Rugger com seu olhar desértico. Em que pensa?
Álvaro (ele) começa a desabrochar algumas bolinhas de papel-manteiga, enquanto a segunda garrafa de Napoleon já baixou ao meio. Ele/eu pego(a) a arma com as mãos trêmulas e aponta-a para si/mim. Não, antes, enxugou os olhos com um lenço de papel extraído do bolso do pijama.
Decorre uma certa desorientação. Primeiro ando como homem comum, depois alargo as passadas, e então corro rumo ao meu clone, esmagando pelo caminho grilos e formigas inocentes, mal conseguindo respirar.
E não é que encontro vazia a casa vizinha! Mas… Mas… e os Napoleons, a Rugger, os copos, os objetos, a vida? Nada. Não vejo nada. Tudo dormia, exceto, ao que parece, algumas bolinhas de papel-manteiga, que se moviam atônitas pelo chão, conformes aos caprichos do vento, e este também deu vida a um cartão que a artista gráfica Ana, minha Ana, ah, ela o assinara.
Enfio a cabeça para fora da janela da casa do clone. O quê? O tipo estranho que bebia Napoleon está agora em pé próximo à cerca de ripas pintadas de branco-neve e alinhadas. Está onde eu estivera minutos antes. Como pôde? Como? Movera-se como um fantasma. Imprimiu-se um sorriso pálido de pavor precedente em seu/meu rosto.
Limpei as mãos suadas em meu pijama de flanela xadrez, enxuguei a testa com a manga e passei a enxergar minhas próprias pegadas no chão de madeira encerada. Curioso, as pegadas estão gravadas em dois sentidos, no sentido de quem entra e no de quem sai da casa vizinha.
O sujeito-eu aperta o cabo da Rugger entre as duas mãos. Apontada de novo? Sim, e desta vez para mim, e a milímetros de meu nariz. Amedrontado, sigo as pegadas em sentido contrário e me escondo atrás do jacarandá. Lanço novo olhar esquivo sobre a janela de casa, e lá está ele/eu com a mira da Rugger boca adentro, ferindo nosso céu da boca…
Mas dois olhos meus (somente meus) se acendem na escuridão espectral. Fiquei ainda algum tempo na cama, vendo sobre a mesa algumas folhas de papel-manteiga com arabescos desenhados por Ana pouco antes de partir. Lá fora, a rua era silêncio só; a mesma noite, aos poucos, ia embora. A noite também ia embora: só.
Recostei a cabeça no travesseiro. Estiquei o braço. Apalpei o chão. Certifiquei-me. Toc-toc: madeira, não grama. Dormir não tem sido fácil. Abaixo do estalão humano, entretenho-me duplicando imagens e auto-imagens enquanto cochilo perturbado pela ausência de Ana. Algo parecido, quem sabe, com o trabalho do autobiógrafo, que busca a posteriori uma impossível coerência entre a vida vivida e a vida sonhada.
(1993)