Muita gente, aqui, por falta de geladeira, precisa recorrer à solidariedade de amigos e vizinhos, senão o leite grátis azeda
Sergio Vilas-Boas
Bem no meio do dia, encontro-me esquecido em Taquaral, distrito de Itinga, às margens da BR-367, entre Itaobim e Araçuaí. Enquanto aguardava transporte para retornar a Itinga, caminhei pelas ruas descontínuas de Taquaral. Estava faminto. Apenas duas idéias mundanas me moviam: a vontade de almoçar no único restaurante aceitável de Itinga, o Tropicaliente, onde, ironia das ironias, “Amex Cards Are Welcome”; simultaneamente, eu me perguntava o que distingue Taquaral do restante deste mundão desigual.
De repente, um porco pardacento cruza o caminho. Mais adiante, duas galinhas ciscam a poeira da rua e, donas do pedaço, aninham-se numa cavidade. Na BR, um garoto passa de bicicleta com a mão esquerda no guidão e a direita conduzindo por uma corda um jegue contrariado. O eterno céu azul do Vale está cinza neste 12 de julho. Chuva mesmo que é bom, nada. No inverno quase imperceptível do semi-árido, as gotas d’água caem (quando caem) com um pão-durismo inflexível.
Anoto: “Em Taquaral as coisas se perdem, não se ganham. Há sempre uma justificativa plausível para tudo o que jamais acontece. Como se diz na região, depois que inventaram a desculpa, ninguém mais morreu. Até o vento carece de fôlego por aqui. Incrível. A peleja diária contra o calorão infernal, a água pouca e a terra tosca imprimem ao povo do Vale um semblante fatigado”.
Ah, mas tem o leite de graça, que chega dia sim dia não, pelo que entendi. O controle da distribuição do “leite do governo” é feito por Dona Geralda, uma artesã séria, caladona e um tanto desconfiada.
– Como vai a senhora?
– Eu tô aí – ela costuma responder, seca. No entanto, seu rosto negro suavemente curvilíneo, de aspecto angelical, é meigo e doce.
Dona Geralda entrega dois litros de leite para cada família de Taquaral, de dois em dois dias. Segundo ela, Taquaral tem uns quatro mil habitantes, e muita gente, por falta de geladeira, precisa recorrer à solidariedade de amigos e vizinhos, senão azeda. E computadores doados também já desembarcaram aqui, embora ninguém saiba ao certo o que fazer com eles. De vez em quando aparece um adulto na sala de computadores da associação de moradores. Entram no Orkut e não sabem sair.
Na sede da associação, Geralda dos Santos Ramos (49 anos neste 2006) conduz uma oficina de cerâmica. Ela é mão na massa, literalmente. Ceramista intuitiva, produz peças intrigantes. Um urbanóide esteta afoito sugere a semelhança entre seus motivos e as esculturas pré-colombianas ou as formas mítico-oníricas do pernambucano Francisco Brennand. Houve um silêncio constrangedor. Indiferente às discurseiras acadêmicas, Dona Geralda esboçou um riso maroto.
– Tirei de dentro de mim mesmo – resume. (Nota: em Taquaral, quem não tem parabólica, pode até ter TV aberta, mas é um canal só.)
Entro na casa de Dona Geralda. Telhado sem forro, porque forro é para poucos. A cumeeira de sua casa tem uns três metros (no Vale do Jequitinhonha, onde as casas são em geral muito baixas, uma cumeeira dessa altura é uma bênção). Longe dos olhos de alunos e dos resgatadores culturais da Fundação de Arte de Ouro Preto, ela me conta que parou de produzir por uns dez anos porque seu trabalho perdera valor. Botijas, vasos, chaleiras, potes, bules, panelas, moringas, filtros e buiões (buião é uma espécie de chaleira, só que bem grande, usada para esquentar água).
– A gente vendia ali, na beira da estrada.
– Vocês vendiam também esses filtros de água com cabeça de gente?
– Não.
– Como eram os seus filtros antes?
– Filtro com pescoço normal.
Quinze anos atrás, Geralda e os filhos precisavam caminhar seis quilômetros de Campinho até Frade (quase na divisa com o distrito de Genipapo). Tinha luz elétrica, não, pois tinha? A família transportava as cerâmicas no lombo e no cocoruto. O objetivo era vender na feira de Itinga, onde se encontrava “coisa mais natural”, diferentemente de hoje.
– Cada uma levava três peças – lembra Maria do Carmo, a filha mais velha.
– A pé?
– A pé. Era uma peça grande equilibrada na cabeça e duas menor, uma debaixo de cada braço.
– Quanto tempo levavam até Itinga?
– Uma hora. Com chuva ou com sol.
– E vendia bastante?
– Mais ou menos. Quando num vendia suficiente pra comprá comida, a gente trocava cerâmica por farinha, arroz, feijão…
Já foi bem pior, mas ainda hoje, quanto mais distante se está do combalido rio Jequitinhonha, maior o medo de bater a maldita da fome. Lembro que acima dos braços cruzados de uma das cerâmicas meio-humanas de Dona Geralda está escrito: Vale do Jequitinhonha/ um povo sofrido/ mas cheio de alegria/ 06.07.2001.
Estivemos em Pasmado, outro distrito de Itinga às margens da 367. Lá, essa alegria do povo do Vale não transparece. Em Pasmado, a gente fica pasmo. É um lugar feio, sujo e com alto índice de alcoolismo. Casebres de pau-a-pique encobrem-se de um fumacê dos diabos. Fornos mal-ajambrados queimam cerâmicas utilitárias vendidas a preço de banana. Em algum canto alguém produz colher de pau para tentar custear comida. Promissor, por outro lado, é ver um bando de crianças brincando de queimada na rua única de terra, aos cuidados de monitores do Peti – Programa de Erradicação do Trabalho Infantil.
Em Taquaral, a cerâmica de Dona Geralda, como ela própria, resiste às chamas e às friezas da vida. Quanto mais fina a espessura, diz, mais resistente ao calor e ao gelo. O barro é preparado a partir de argila escavada com enxada. Dona Geralda quebra a pauladas os torrões secos. É o “desencaroçar”. Depois de peneirada, a argila é molhada e deixada de molho uma noite inteira. No dia seguinte, Geralda pisa no barro como quem, no passado, pisava em uvas para fazer vinho.
Barro pronto, começa o “amassar do pão”, a moldagem das peças. Dona Geralda joga o barro sobre a placa de madeira, vira, joga para o outro lado, bate, rebate, bate. Do centro para as margens, ela abre o bolo de barro. Estica-o para cima, erguendo o edifício à medida que as paredes se adelgaçam. Por dentro, passa uma lasca ovalada de cuia.
– Deu errado.
– Entortou.
– Desmancha e começa tudo de novo – diz ela, pacientemente.
Maria do Carmo conta que aos 15 anos se mudou para Belo Horizonte, onde tentou trabalhar em indústrias de cerâmicas.
– Por que não deu certo? – Pergunto.
– Ah, fazê cerâmica em máquina de torno é outra coisa. Outra coisa. É começar do zero, como essas meninas tão fazeno hoje aqui.
– A mão resolve tudo, né?
– É. No torno o barro fica perigoso, escorrega da mão; e precisa de ter muita, muita força – explica Do Carmo.
As digitais de Dona Geralda (dos pés e das mãos) estão em tudo o que ela faz. Para criar seus filtros de água com curvas, rostos e membros femininos ela conta somente com três ferramentas de alta tecnologia: um pedaço de sola de couro para servir de lixa; uma faca de taquara para ajudar a moldar e recortar; e uma lasca ovalada de cuia para arredondar.
É isto: Dona Geralda singulariza seu entorno. Taquaral, com ela, se diferencia do restante do mundo. Quer saber? Diante das tantas necessidades humanas locais, dane-se a insignificância de minha barriga roncante. Sigo andando meditativamente, levando comigo uma gigantesca fomezinha de nada. Imerso num silêncio compacto, esse compasso de espera me ajuda a pôr palavras em meus vazios (e Itinga está a apenas uns vinte quilômetros daqui).
Ontem estive rapidamente na casa de Seu Leolino (Esteves da Conceição), o líder da folia de reis de Taquaral, a mais persistente de todas as folias da região de Itinga. Um dos diferenciais das folias desta região, segundo Seu Leolino, é a contradança, uma espécie de catira (ou cateretê). Além dos agradecimentos em versos, típicos dos cânticos de Reis, os foliões do Vale dançam em círculos, batendo os pés, explica.
Seu Leolino planta alho, cebola e tomate à beira do Jequitinhonha. Não se pode dizer que, hoje em dia, ele trabalhe de sol a sol porque simplesmente não pode mais expor-se ao sol. Está com um “problema de pele sério”. Por isso levanta às cinco da manhã para ir à roça. Às nove tá de volta à sombra. Só retorna às suas plantas quando o sol começa a se pôr.
Não por falta de graça, seu grupo de folia não se importa com a importância de uma boa sanfona.
– A sanfona é muito aguda. Encobre os desafino da voz. Atrapalha escutá. Dá muito erro. – Diz ele, em tom professoral. – Uma folia de reis sempre tem as mesmas etapas: cumprimento; aviso de quem chega; o que veio trazer; o que quer; e quem é Ele, o Mestre (na vida passada e hoje).
Os foliões de Itinga percorrem a zona rural conforme a celebração: de 24 de dezembro a 6 de janeiro é folia de reis; de 15 a 20 de janeiro, folia de São Sebastião; de 1º a 6 de agosto tem folia do Bom Jesus.
Em 15 de julho de 2006 (um sábado), organizados pela Faop, quatro grupos de folia se apresentariam na praça de Itinga, . O grupo de folia de São Sebastião de Seu Leolino saiu às ruas com camisas e bonetes vermelhos. Além de violão, viola, caixa, pandeiro e triângulo, arranjaram uma… sanfona. E o João Gomes ainda apareceu com seu “balacubaco”, instrumento de percussão que ele inventou com duas peças: um passador de cabresto e um pino de válvula de descarga.
– É só batê um no outro, assim – mostra João, estranhando o meu interesse.
No mesmo Grande Sábado, apresentou-se o pessoal do distrito de Genipapo Dois (sim, existe o Genipapo Um, mas vamos com calma). Itinga fica a 635 quilômetros de Belo Horizonte. Engloba dezenas de distritos, como explica a jovem Cirlene Oliveira (ou simplesmente Chiz), interlocutora da Faop com as comunidades. Chiz é moleca, baixinha e falante. De tão resolvida e imprescindível, resolvi alterar seu apelido por alguns dias: Chiz virou Chiz-Tudo.
Entao, Chiz-Tudo acha que em Genipapo Dois devem morar umas trinta famílias, no máximo. A liderança da folia deste distrito está a cargo de uma mulher miúda e sofrida, mas forte como um carvalho: Dona Isabel.
Dirigíamos um Fox, modelo frágil para as estradas em petição de miséria. Chiz-Tudo sugere pararmos à beira da estrada poeirenta para completarmos a pé a viagem até a casa de Dona Isabel. É um atalho lageado, rochoso, mas plano. No caminho, vemos alguns cactos nascidos entre as frestas das pedras, ou seja, do nada. Em minutos avistamos a casinha de pau-a-pique onde Dona Isabel mora há quarenta anos. Casa e entorno são brancos. Sem cerimônias, Chiz-Tudo atravessa a cerca de arame e atinge o quintal da casa. Fazemos o mesmo.
– Dona Isabel!
Palmas.
– Dona Isabel tá aí? – Pergunta Xis-Tudo.
Um menino corre mais que depressa para dentro da casa, dando a entender que foi chamá-la. Enquanto isso, debaixo de uma varanda improvisada, os intrometidos (incluindo eu) se encantam com as calhas para captação de água de chuva. As calhas estão dispostas nas extremidades do telhado duas-águas da casa de Dona Isabel. Se chover, e dizem que de vez em quando chove, a água correrá pelas calhas rumo a um reservatório de vinte mil litros. Novembro e dezembro é (costumava ser) a época das águas. Hoje em dia já não dá para saber ao certo.
Vemos um quintal de terra branca, calcária, impecavelmente varrido e limpo. Vista de fora, é uma casa tão humilde quanto marcante, e não apenas pelo branco onipresente. Dona Isabel aparece na porta. De imediato, impacta-me o seu rosto sulcado, tostado, sua voz penetrante e a estatura minúscula. As cargas que transportara na cabeça talvez a tenham espremido para baixo. Até há pouco tempo, ela e as filhas tinham que levar na cabeça imensas latas de água extraída do Jequitinhonha.
– Nós num carrega mais lata. Agora elas vai no nosso jeguim – conta, lembrando que o jeguim agüenta duas latas de trinta litros de água cada, o que poupa o esforço físico sobre-humano.
Dona isabel agora nos mostra a cozinha, que fica noutro casebre, fora da casa principal. Areadas à exaustão, suas panelas de alumínio, penduradas nas paredes, cintilam como estrelas; potes e vasos de cerâmica têm clareza solar; e o fogão a lenha é branco feito neve, como tudo por aqui, aliás. Como assim, tão branco?
Ela me conta que colhe no mato uma planta chamada pincel. Dá com a ponta do tronco da planta no cimentado até a ponta amolecer toda. Depois recorta e a planta vira um… pincel. Ela então bota barro branco num caneco, molha, faz uma massa pastosa, mete o pincel natural dentro do caneco e pinta o fogão de branco. É um fogão novo todo santo dia. Esta é uma das casas rurais mais brancas que já vi na vida, e não resisto em declarar isso abertamente.
– A água é pouca, mas a gente é limpa – conclui Dona Isabel, altiva.
– Claro, claro.
Ela espanta da testa uma mosca. Me perco por um instante.
– Do que a senhora mais gosta aqui em Itinga?
– Da comunidade. As pessoa aqui é muito unida.
Dona Isabel é sindicalista. Ou melhor, foi. Por dois mandatos. Um de três e outro de quatro anos. Deixou-os neste 2006. Em função de sua militância, esteve em Brasília e Belo Horizonte várias vezes. Tirou uma foto com Lula antes de ele se tornar presidente.
– Se ocê vê essa muié num palanque cê num credita – interrompe Seu Piroca, o marido. – Tampinha desse jeito, cê tem que vê como ela fala alto. Ela já cantou o Reis na Rádio [Cultura FM, 89,7] de Itinga. Lavrou cristal branco, citrino, pedra corada e deluzita – completa Seu Piroca, nitidamente partidário.
Pedro Rodrigues de Oliveira, vulgo Seu Piroca, é quem coa o primeiro café do dia na casa. Magricelo, curvado, rosto murcho e cheio de lacunas nas ferraduras da boca. Sua estrutura óssea parece um conjunto de varetas prestes a desabar à primeira brisa. Quer porque quer me mostrar um abobrão de todo tamanho, misteriosa dádiva de seu pequenino quadrado de terra – um quintal, praticamente.
– Seu Piroca, pra que aquela cabeça de boi em ponta de vara fincada ali?
– Pra tirá mal olhado – ele diz, sério.
Dona Isabel e Seu Piroca tiveram doze filhos (11 estão vivos), 41 netos, dois bisnetos. Ela está com 62 (neste 2006); ele, com 73. Diz ela que Piroca uma vez pensou concretamente em se matar com um tiro de espingarda.
– Por quê?
– Porque nós ficamo sem nada pra comê.
Segura de si, decidida como sempre, Dona Isabel o dissuadiu.
– Ih, faltou comida pra nós muitas vez. Passamo muita humilhação. Eu carregava areia na cabeça pra lavra. Teve dia da gente andá sem rumo debaixo de chuva que Deus dava. Piroca tava com uma calça com remendo de pano que nem Deus sabia mais de onde veio. Até que ele bateu na porta de um amigo…
Olho-a nos olhos, constrangido. Sinto um nó na garganta.
– Então, ele bateu na porta de um amigo nosso que deu um bucado de fubá e tocinho pra nós – ela prossegue. – Fiz um caldo, todo mundo comeu e eu falei assim: “Nós tem que lutá, Piroca. Num disiste, não”.
– …
– Tenho vergonha de contá, não, moço.
– De onde a senhora tirou força aquele dia? – Recupero-me.
– Olha, na minha cabeça só entra coisa boa. E coisa ruim nela num fica.
Dona Isabel parece ter decorado o Evangelho inteiro. Sabe responder de cor e salteado os versos dos cânticos da folia de reis. No dia da apresentação dos grupos na praça de Itinga, seus agudos potentes, amplificados por microfones, ecoaram por toda Itinga:
– No dia primeiro de janeiro/ Em que aqui cheguei cantano/ Jesus, eu aqui cheguei cantano/ Isso é véspra de festa/ Entrada do novo ano.
Tocante é a concentração dela durante o ensaio. Dizem que Zé Fernandes, o grande mestre-folião do distrito de Água Fria era assim também. Na época dos resgates da Faop Zé estava acamado. Sua mulher Jordilma fez o que pôde para encorajar a turma. Contou com o apoio constante do casal Zezin (José Alves Luiz) e Geralda (Ribeiro da Silva), incorrigíveis entusiastas da cantoria. Zezin e Geralda cederam sua casa à beira do córrego Água Fria, onde o grupo, com violas e sanfona, incorporou a sabedoria de Zé Fernandes.
A Dona Geralda de Água Fria é divertida e despachada. Sua voz estridente faz bem aos alto-falantes. Seu Zezin, o marido, por sua vez, é generoso e tímido. Até fala meio enrolado. Mas ambos não se importam em cantar. O mecenato (casa, comida e bebida) lhes basta. Também é fato que Seu Zezin e seu inseparável chapeuzin de vaqueiro fez campanha de porta em porta. Chamou. Implorou. Até que animou os vizinhos de distrito a darem as caras nos ensaios. Seu Zezin é um homem bom, de palavras poucas, mas certeiras. Com ele não tem esse negócio de nutrir sentimento ruim, por nada nesse mundo:
– O ciúme… O ciúme é um gai da má vivença.
Sem Zé Fernandes a puxada de versos sobrou para o Joaquim (Francisco de Almeida), que no sábado da apresentação em Itinga apareceu com um enorme galho de arruda na orelha esquerda (os foliões da Água Fria se apresentaram de camisas e bonetes amarelos).
– Reis de Lapinha é o Reis mais velho do mundo. Foi os três reis magos que cantaram – lembra o travadão Joaquim, homem de um humor cortante, embora nunca sorria.
No Grande Sábado Joaquim levou uma marionete de madeira que ele inventou. O boneco dançava puxado por uma das cordas de seu violão. Foi a única vez que o vi deixar-se rir, ainda que implicitamente. Filho de Antônio Marin, Joaquim usa um chapeuzinho de vaqueiro igual ao de Seu Zezin.
– Deus que salve a Lapinha do Santo/ Onde Deus fez a morada/ Onde mora o calix bento/ e a hóstia consagrada – ensaia Joaquim.
– Porta aberta e luz acesa/ Recebo o Espírito Santo com toda a sua folia – ecoa o respondedor.
– Tem muito tempo que nós num fulia – justifica Manoel (de Souza Franco), vulgo Manoel de Virgílio, durante o ensaio na casa de Zezin e Geralda. Manoel tocava um instrumento importante: um prato esmaltado raspado com um garfo.
Ainda em Taquaral, as duas galinhas continuam aninhadas numa cavidade da rua de terra. O porco pardacento não retornou de sua trajetória errática. Sentado numa calçada descontínua, à sombra, percebo por que a fome jamais regride. Fome não envelhece como as células do corpo. A fome fere as células do corpo. E nada do carro aparecer. Esqueceram de mim para que eu me esquecesse. O modesto Tropicaliente com suas irônicas etiquetas “Amex Cards Welcome” ainda terá comida para mim?
Na tarde anterior, depois de passarmos (Chiz-Tudo, Patrícia e eu) por Genipapo Dois, pegamos o VW Fox rumo ao distrito de Genipapo Um. Estrada difícil, pedras soltas pelo caminho, aclives descabidos. Chegamos lá à hora da Ave Maria. Era uma noite espectral. Uma lua enorme e branca começava a iluminar os perfis serranos.
Em Genipapo Um (lugar também conhecido como Pintos), vivem mais ou menos umas vinte famílias. O mestre de folia aqui é Seu Preto (74 anos neste 2006), um negro forte, decoroso e resoluto. Ele planta batata, milho e feijão à beira do Jequitinhonha. Sua casa fica a uns 500 metros do rio, diga-se.
– Vão vê se ocê sabe onde cê tá: pra que lado tá Itinga? – Ele me pergunta, de sopetão.
Olho a escuridão ao redor.
– Praaaaa… lá!
– Ah, intão cê sabe as direção do mundo…
Seu Preto acha que as folias de louvação a Cristo e santos estão perdendo a direção, infelizmente.
– A bebida. Olha, beber cachaça antes, durante e depois duma folia é muita esculhambação. Aqui, num permito.
A falecida mulher de Seu Preto, Dona Edi, conduziu durante anos a folia do Genipapo Um, cuja formação era majoritariamente feminina, algo inusitado nas folias de reis Brasil afora. Dona Edi faleceu exatamente no dia de os foliões e foliãs concluírem a peregrinação de casa em casa, felicitando e agradecendo.
Segundo Maria das Dores Vieira Santos Dutra, a caçula das mulheres, foi assim: no dia 6 de janeiro de 2006, a família rezou o terço reunida na casa de Das Dores.
– Minha mãe tava boa, normal. Fez contradança com meu irmão Antônio. O povo comeu o que tinha de comê. Ela foi embora pra casa bem, num tava sentino nada. Daí ela entrou na casa, acendeu umas vela pro anjo da guarda dela e foi lavá os pé. Aí ela chegou na porta da cozinha e disse: tô com uma dor no céu da boca. Bochechou água com sal. E meu irmão perguntou: passou, mãe? Tá passano, ela disse, e foi deitar. Mas logo chamô a minha otra irmã, a Anézia (Nezinha), dizeno que tava com muita falta de ar. Nezinha esfregou álcool nas pernas dela. Mas mamãe levantô: “ai, me segura que vô caí”. Caiu. Num levantô mais.
Delicada, sorridente e luminosa, Das Dores condensa em seu cabelo rastafári o passado, o presente e o futuro de seus filhos.
– Quem tava em casa nessa hora?
– Só a Anézia e o Zé Donizete.
Das Dores me contou isso à porta da capela que fica no alto de um morro em Genipapo Um. Os ensaios para a apresentação do Grande Sábado foram nesta capela, providencialmente iluminada, naquela noite, pela tal lua incomum.
Sobre a mesa da capela da comunidade descansavam vários exemplares do livro Abra a porta: cartilha do povo de Deus. Abro na página 449, no capítulo “Cantos religiosos”. À página 451, estava escrito: “Folia da Natal”. E o povo cantava, confusamente:
– Deus te salve, casa santa/ Onde Deus fez a morada.
No Grande Sábado, o grupo de folia de Genipapo Um, trajando azul, reencarnou a força de Dona Edi. Seu Preto soltou o gogó. Teve gente que se emocionou atrás da carroceria do caminhão-palco. A praça estava lotada. Foguetes espocaram em Itinga, uma cidadezinha cortada pelo Jequitinhonha. Durante décadas, seus 14 mil habitantes (45% na zona rural) sonharam com uma ponte que conectasse as duas porções da cidade, o que somente se concretizou em 2003. Itinga significa “água branca”, no dialeto botocudo.
Um carro finalmente aparece em Taquaral. Flagram-me alheado, eu feito eu, perdido em pensamentos sobre o meu cavalo, disposto a perder-me na vida à custa de aventuras. Penso nos exemplos dessas pessoas. Com seus facões e suas digitais, elas impõem à morte uma dieta severa. E eu, igualmente filho de Deus, por fim matei minha fomezinha de nada no Tropicaliente: arroz, farofa de feijão andú e carne de sol desfiada. Os adesivos da Amex Cards eram enfeites, claro. Itinga e seus distritos ficarão na nossa lembrança como a cidade onde crianças pobres disputam espaço nas janelas abertas para assistir à tevê do vizinho.
Escrito em 2006 para o projeto Resgate Cultural do Vale do Jequitinhonha, executado pela Fundação de Arte de Ouro Preto (Faop).