Se os desígnios de Deus e as ambições dos homens tivessem
medida, este lugar seria outro daqueles sumidos do mapa
Sergio Vilas-Boas
Dois homens, duas gerações, uma fusão: o minério com a memória. Um é o eternamente tropeiro Aristides Alves Filho (Seu Tidinho), reserva histórica de um tempo em que o limite era a amplidão e a bússola o Pico do Itambé (a 2.300 metros de altitude). O outro é Joaquim Hermício Valentim, mestre de forja e fundição, cuja técnica tradicional remonta ao início do século XIX, quando foi erguida a primeira fundição de ferro no Brasil, em Morro do Pilar (MG), 1812.
Antes de Seu Joaquim nascer, Seu Tidinho já conduzia tropas de burros carregados do que precisassem os mercados de Curvelo, Diamantina e São Gonçalo do Rio das Pedras. Depois que Seu Tidinho aposentou os burros, Seu Joaquim ainda caldeou, eventualmente, certos acessórios de tropeiros, como estribos, trempes, cincerros, polaques, aziás e puxavantes (instrumento de aparar os cascos dos animais antes de ferrá-los).
Dois homens valentes em suas durezas cotidianas, e que um dia se tornariam vizinhos de parede-meia numa cidade impossível a olho nu: a pequena Santo Antônio do Itambé, onde os dois vivem há décadas, é uma concha labiríntica; os casebres se penduram nos morros; o antigo rio de lavra corre no vale com uma preguiça desoladora. As casas, as ruas, as pessoas, o coreto, o chafariz desativado e as ninfas gregas do exótico jardim suspenso parecem estar onde não deveriam ter havido. Se os desígnios de Deus e as ambições dos homens tivessem medida, este lugar seria outro daqueles de Minas sumidos dos mapas.
Para quem quer se soltar, como inventar, aqui, um cais? Aí é que tá. As pessoas deste mesmo lugar fora de mão querem dar uma mão para seus destinos. Embora se sintam – e assumam-se – isoladas, acolhem com sábia generosidade, evidenciam ganas de puxar a língua do passado que herdaram. Contra a parede do esquecimento e a favor de um contexto aparentemente (só aparentemente) inglório, encontram-se Seu Tidinho e Seu Joaquim. Enquanto um funde, o outro narra. Assim, entre pedras no caminho, os minérios se liqüefazem e as memórias se solidificam.
E mesmo aqui, nesta perdição, as escrituras podem captar também o específico. Seu Tidinho nasceu em Diamantina, em 1912. Seu Joaquim em Caratinga, em 1944. Os chapéus os usam. Os óculos os protegem. São antípodas, no mais. Enquanto a prosa de Seu Tidinho flui com um rio, a de Seu Joaquim esgarça. Detalhista prodigioso, Seu Tidinho tem fôlego para emendar uma história na outra sem contratempos, fastios ou confusões. Seu senso de detalhe é incomum.
Surdo do lado direito e um pouco do esquerdo, olhos malsãos (o cristalino perdeu transparência), ele enxerga de esguelha. Na verdade, pressente vultos a distâncias imensuráveis: Quem chegô aí? De vez em quando sua bengala de pau-pereira se sobressai no retrato. Seu Tidinho é resoluto, prático, matreiro. Ser tropeiro foi necessidade. Num foi escolha, não. Eu tinha muita força física, repertório e viveza. Isso ajudô.
Acorda religiosamente às cinco da manhã, toma um copo d’água, come dois ovos dos grande cozidos, pão com uma lasca de requeijão duro esquentados na frigideira e toma café à vontade. Convertido o jejum, vai para a calçada e sobre ela fica. Se ocê quisé me matá, é só cê chegá aqui às seis hora do dia que eu tô ali sentado.
Nos tempos de tropeiragem, os hábitos eram mais ou menos os mesmos. A diferença é que, com dez burros carregados (de alimentos, bebidas, tecidos, medicamentos, querosene etc.), sempre havia alguém decidido a assaltar. Mas nunca fui assaltado. Fui sê assaltado em Belo Horizonte, depois de velho.
Como arrieiro da tropa de seu padrinho, Modesto Botelho, Seu Tidinho chegou a ganhar mil réis. Aos 28 anos, havia composto, de burro em burro, frota própria, quero dizer, tropa própria. Na época, mil réis dava pra comprá dez pão. Um burro bom custava cem mil réis. Esse homem saudável para a idade era moeda comum no trajeto Diamantina-Curvelo (150 quilômetros). Nós levava vinte e dois dia ida e volta pra fazê esse trajeto.
Sua tropa era típica. Além e aquém de Seu Tidinho, havia um cozinheiro, um arrieiro, dez burros e uma égua-madrinha de cujo peitoral tilintavam cinco cincerros para marcar o ritmo. Cada animal suportava 12 arrobas (cerca de 180 quilos) de carga. Não eram atados um ao outro, na fila. Os burros simplesmente seguiam a égua-madrinha. Assim é. E a gente num passava cinco minuto sem cruzá com otra tropa. Em 1946, quando fiz a última viagem, cheguei no mercado de Diamantina e só vi caminhão. Minha vida de tropeiro tava acabano. Daí passei a fazê trecho mais curto.
Na tradição da cultura tropeira, o bom visual da tropa simbolizava reputação. Nas testera de cada animal meu tinha o brasão da República. Enquanto os brasões cintilavam ao sol, Seu Tidinho caminhava descalço ou com uma alpercata que ele mesmo fazia. Comiam feijão ferrado ou feijão bago-bago, que a modernidade tardia denominaria… feijão tropeiro! (Havia também um certo “feijão machucado”, também cozido, mas na textura de um mingau.) Joaquim de Brás era meu cozinheiro. Ele limpava as panela preta com areia e zombava: “cê lembra dessa vasilha?”.
Rancho era o lugar de parada para almoço e janta – na verdade, uma ração: carne frita na gordura, canjiquinha, feijão ferrado e água de mina. Cachaça, só pra remédio ou pra esquenta-peito depois de chuva. Em cada parada, liberavam-se os animais para pastar. Nós só andava três légua por dia, senão a tropa estragava muito. Os ranchos não passavam de pequenos galpões rústicos. Abrigavam da chuva e do sereno. Nada mais. Pele de tropeiro tinha de ter espessura para suportar picadas de todo tipo. Eu durmia enrolado numa peça de couro de boi dobrada em duas banda, forrada com paina.
O vizinho Seu Joaquim já não presta muita atenção nessas lembranças porque conhece de cor cada história de Seu Tidinho. Chama: Toma assento, Joaquim! Eis agora o nosso homem que funde desde os 14 anos e que começou fazendo bicos de arados e rodizes de moinhos e que bem jovem assumiu uma fundição em Guanhães. Também aos 28 anos, ainda solteiro, Seu Joaquim se mudou para Santo Antônio do Itambé acompanhando seu mentor – João Fernandes Diana, nascido em Morro do Pilar, terra da primeira fundição de ferro do Brasil.
João Fernandes dominou uma técnica secular. Montou fábricas em Morro do Pilar, Guanhães, São Pedro do Suaçuí, Santo Antônio do Itambé, Diamantina, Itamarandiba e Dores de Guanhães, nessa ordem. Durante uns vinte anos, Seu Joaquim foi pupilo e braço direito de João Fernandes. Mas dois carnero de chifre num bebe água na mesma cumbuca. Achei melhó caçá meu rumo. O incrível João Fernandes, segundo o discípulo, morreu velho e pobre com sua aposentadoria de salário mínimo em Lagoa Santa, região metropolitana de Belo Horizonte. Ele nunca foi numa escola, mas escrevia e lia. Me ensinô até a sê embrulhão. Mas isso eu num aprendi.
Seu Joaquim prende um Hollywood na boca sem a colaboração dos poucos dentes dispersos. O problema agora é que as soldagens encheram seu sangue de chumbo e os olhos de limalhas. Já teve de ir à capital duas vezes fazê raspage. Sofreu com duas pneumonias por choque térmico na forja. Mas sua valentia, como a do amigo Tidinho, segue serena. Procuro mexê com fogo nos dia de ar parado e quente. Em dia frio e ventoso, num mexo.
Neste 2005, Seu Joaquim produz mancais para engenhos de cana. Para fabricar os mancais, o segredo está no molde das peças, feitas a partir de um modelo. Atenção: não tem essa de uma peça sair rigorosamente igual à outra, ok? Para moldar os mancais, Seu Joaquim usa caixas quadradas (de cerca de 30×30 centímetros) de terra úmida misturada com argila ultrapeneirada. Pressionada à terra com delicadeza, a peça-modelo escava a fôrma e o mestre já prevê nela um canal para entrada do ferro derretido. Seu Joaquim também perfura os quatro cantos da fôrma com uma vareta fina. É pra escapá os gás. Se eu num fizé isso, o material num ocupa a fôrma toda. A peça fica incompleta.
Enquanto a moldagem exige técnica apurada, o derretimento requer fogo intenso. Pleno de ferros-velhos, o cadinho (feito de grafite e amianto) é posto no tambor cheio de carvão. Na oficina de Seu Joaquim, esse tambor foi acoplado a um tubo que, por sua vez, recebe o sopro de um compressor elétrico. Seu Joaquim controla o sopro. Para metal, abro o registro todo. Pra trabalhá manual, com bigorna, fecho um pouco pra dá menas chama. E ergue-se uma língua de fogo tão chamativa quanto as histórias de Seu Tidinho que, apesar do adiantado da hora, nem cochila.
Escrito em 2006 para o projeto Resgate Cultural da Estrada Real, patrocinado pelo Sebrae-MG e realizado pela Fundação de Arte de Ouro Preto (Faop).