Além de uma caixa inútil, ele tinha um cinturão de tecido fino recheado com duzentas notas de cem dólares
Sergio Vilas-Boas
Empurro um carrinho rumo ao corredor da alfândega. Trago duas caixas grandes e uma mala com roupas sujas e pequenas compras. Sigo na direção da porta sob a placa “Nada a Declarar”. Na entrada do corredor, porém, um homem moreno baixo de terno azul-marinho me aborda.
“O que é isso?”, ele pergunta, mal-humorado.
“Um aparelho de som.”
“Tem a nota fiscal?”
“Aqui está.”
“OK. E essa caixa aqui… O que tem dentro dela? É um videocassete?”
“Não”, respondo honesta e ingenuamente. “Só a caixa é que é de videocassete.”
“O que é, então?”, insiste o sujeito agora ríspido.
“É um aparelho que…”
“O quê?”, o agente eleva o tom de voz, com a testa enrugada e a mão direita empurrando a concha da orelha para a frente, como se estivesse surdo.
“Um aparelho que…”
“Naquela fila, então”, aponta impaciente.
Mas esta é a fila de quem tem “Bens a Declarar” (a mais temida pelos consumistas e sacoleiros ainda em dezembro de 1997). Oh, não… Além dessa caixa inútil, tenho vinte mil dólares na cueca, um cinturão de tecido fino recheado com duzentas notas de cem. Não pertencem a mim, claro. A essa altura, o sujeito deve estar perdidamente ansioso no saguão aguardando um tal de fulano de quem nunca vira sequer uma foto.
De pé, na fila, observo Tarcísio Meira e Glória Menezes abrindo suas malas para que os fiscais as revistem. Estão à procura de produtos que o Brasil é incapaz de produzir e tampouco podem ser comprados livremente noutro país. Talvez Tarcísio e Glória sejam contrabandistas de muambas eletrônicas; ou talvez os fiscais pretendam mostrar que “aqui não há privilégios; cumprimos a lei, doa a quem doer, estão vendo?”.
A fila anda muito lentamente, ou não anda. Já passa de uma da tarde quando chega a minha vez. Abrem a minha mala. Reviram-na sem o menor respeito. Fazem mil perguntas: e esses CDs; e esses livros; e esse moedor de café… Quanto é, quanto é? Tem nota? Abre essa caixa, por favor; a nota fiscal, a nota, a nota. E o cara apalpa e apalpa cada canto. Arrumada com tanto zelo, a mala é agora uma mixórdia. As roupas sujas transbordam.
O fiscal manda abrir a caixa onde está escrito “videocassete”, a tal. Corto as fitas adesivas com dificuldade. Não sei ao certo o que a caixa contém. Estou apenas fazendo um favor (pagando um mico, na verdade) para o mesmo amigo que me entregou as duzentas notas de cem dólares.
“O que é isso?”, pergunta.
“É um aparelho de testes. Uma amostra grátis. Não tem valor comercial”, digo, visivelmente aborrecido.
“Como é que você sabe que não tem valor comercial?”, o sujeito interroga enquanto tenta descobrir fundos falsos na caixa, que lembra uma valise, porém grande.
“Caixa de testes de um sistema de alarme residencial”, explico, agora firme. “Um painel demonstrativo. Um simulador. Nada mais. Quem vai querer comprar essa engenhoca?”
“Se o senhor trouxe é porque alguém está esperando por ela.”
“Eu já disse pro senhor. Um amigo me pediu pra trazer porque ele pretende representar essa empresa no Brasil, caso o alarme seja considerado eficaz.”
“Vamos ver. O senhor tem, ao todo, 550 dólares comprovados em mercadorias. De qualquer modo, afora a caixa, o senhor já ultrapassou os 500 dólares permitidos para bagagem acompanhada.”
“Como?”
“Quer dizer que o senhor tem de pagar multa de 100% sobre os 50 dólares extras e mais 100% sobre o valor da sua ‘caixa demonstrativa’. Qual o valor da caixa?”
“Senhor, por favor, estou exausto. Estou viajando há quase vinte horas. Já lhe disse que esta caixa é uma amostra grátis. Não tem valor comercial. Não posso simplesmente inventar um valor. Não faz sentido.”
Eu ia finalizar perguntando ao fiscal o seguinte: “Também não faz sentido eu passar por tudo isso apenas porque ‘estourei’ cinqüenta dólares, não é mesmo?”. Mas mudo logo de idéia (por causa do cinturão). E também porque o sujeito certamente me apontaria o dedo e diria “Eu faço perguntas e o senhor (as) responde”.
“Entendo, mas não posso fazer nada”, endurece o fiscal dirigindo-se diretamente a mim. “E, como o senhor pode ver, a fila é longa e as pessoas estão inquietas.”
Suspiro. Conto até dez. Trêmulo, irritado, indignado. Arremessaria a caixa na direção do fim do mundo. Maldita hora em que fui me envolver nisso. Mas preciso manter a calma. Não posso chamar a atenção para mim. Se me revistarem, encontram o cinturão e me prendem (é proibido transportar mais de 9.999 dólares em espécie).
E pensar que vim ao Brasil com o único objetivo de participar de um processo seletivo para uma vaga de emprego. E se eu disser isso ao fiscal? Não. As coisas ficariam ainda piores. O cara jamais vai acreditar. Como pode um sujeito que reside no Brasil estar vindo de Nova York apenas para uma entrevista de emprego no… Brasil? Eu poderia explicar isso facilmente, mas…
“Essa caixa vale 250 dólares”, dispara o fiscal, categórico.
“Como?”
“Isso que o senhor ouviu: 250 dólares.”
“Mas…”
“Então, é assim: vá praquela fila ali e se informe. Vão lhe dar um formulário. O senhor preenche e entra na fila do carimbo. Bata o carimbo e traga o formulário aqui pra mim. Confiro e aí o senhor leva a guia preenchida com o valor total da sua multa (300 dólares) pra pagar no banco. Só aceitam dinheiro. Nada de cartão de crédito. Daí o senhor volta aqui com a guia quitada e, se estiver tudo ok, libero a sua bagagem.”
Olho ao redor, desolado. Para cada etapa do processo de liberação da bagagem há uma fila enroscada uma na outra – ninhos de serpentes. Devastado, remoendo iras e preconceitos indizíveis, o coração dispara. Tudo por causa de uma entrevista de emprego.
Agora (a todo momento) me vem à mente o rosto do fiscal da Receita Federal, contra quem eu seria capaz de um ato bárbaro de violência se as regras sociais fossem ainda mais frouxas do que são. Penso no risco que corri com o cinturão de vinte mil dólares dentro da cueca.
Cacete! E aquele tom de suspeita direcionado a mim pelo idiota do sujeito que compareceu ao aeroporto para apanhar a grana. O cara é irmão de um dos emigrantes brasileiros com os quais convivi em Nova York por acaso.
Estressado, esse cara suspeitou que eu havia fugido com o dinheiro e aquela caixa imprestável. Travamos um diálogo nonsense antes de irmos a uma cabine do banheiro, onde a grana foi contada, nota por nota, desafiadoramente. Son-of-a-bitch.
Faz um calor desgraçado em cada centímetro desta cidade cinza. Estou com fome, despenteado, amarrotado, com olheiras, o intestino preso, um irritante som de apito ecoando em minha cabeça e ainda por cima a clara janelinha do quarto a anunciar-me “ei, estamos no horário de verão!”. Odeio horário de verão.
O pior de tudo, porém, está por vir: o que fazer entre este exato minuto e as vinte e quatro horas seguintes? Tento organizar as idéias: primeiro, mudar de quarto. Ir para um mais silencioso, porque neste será impossível dormir; segundo, tomar um banho; terceiro, sair para comer algo aqui perto e voltar o quanto antes; por último, cair na cama e dormir um número recorde de horas, forçando a passagem do tempo.
Na cama, virando de um lado para o outro como um bife na chapa, logo me vejo obrigado a admitir que não serei capaz de ignorar os sinais negativos que o destino emitiu nas últimas horas. Uma insegurança irracional me acomete. O mundo lá fora morrerá de rir da criança desengonçada em que me transformei. Interromper as férias pelas quais esperei durante mais tantos anos em troca de uma entrevista de emprego, cacete. Uma típica “decisão errada”. Até porque…
(2008)