Três figuras incríveis se mobilizam para resgatar em julho a festa popular do “Boi Janeiro”, que andava meio bovina
Sergio Vilas-Boas
Está para começar o folguedo temporão do Boi Janeiro em Jequitinhonha, cidade adjacente ao ex-Grande Rio. Os brincantes estão reunidos na desativada Escola Dr. Nuno Melo, inaugurada em 1913, tombada pelo patrimônio histórico municipal.
Um grupo de senhoras alvoroçadas (elas se consideram da “terceira idade”) ensaia as marchinhas.
– Tá errado, gente – diz o carnavalesco Leonardo, conhecedor dos mistérios do Boi. – Começa de novo. Assim, ó: Lá vem o sol/ lá vem a lua/ lá vem o Boi Janeiro/ Passeando pela rua…
Enquanto Dona Odail Botelho comanda o coro, Leonardo orienta os últimos detalhes: vestes, alegorias, adereços, ritmos, evoluções.
– Mexe o Boi, mexe o Boi, faz que ele vai chifrar! – orienta Leonardo.
De repente, confusão geral. Cada um resolve cantar a letra de seu jeito. Todo mundo fala ao mesmo tempo. Parece que as divertidas senhoras, os sujeitos sob os bonecos, os palpiteiros, os omissos e os ausentes passaram a entender de Boi Janeiro de repente. Até os percussionistas se perdem. Ah, não!
– Calma, calma – alguém pede.
A capitã Dona Odail reconduz o barco:
– Povo de Jequitinhonha, vem apreciá/ Venha ver o Boi Janeiro/ Que aqui não há/ Povo de Jequitinhonha/ Venha dar valor/ Venha ver o Boi Janeiro/ Passeando em flor…
Mas o atento técnico Leonardo, insatisfeito com seu time, ainda gesticula e conclama. Manda o sujeito sob a pele da Nêga girar para a esquerda e para a direita, alternadamente.
– É pra fazê os braço da Nêga balançá! Joga os braço da Nêga, assim, ó…
– Cê ta doida, Nêga/ Cê tá doida, Nêga/ Olha o cabelo dessa Nêga – entoam as senhoras, em uníssono.
– Essa parte num é agora – protesta Leonardo.
– Nem tá no livrinho – comenta a sabida Dona Elza, costureira-estilista das roupas de chita do Boi e da Nêga recém-nascidos.
Desde o meio da tarde de hoje circula na cidade um opúsculo com canções populares de Jequitinhonha, registrado em papel jornal pela centenária prensa F.M.Weiler do tipógrafo Seu Tião (Sebastião Bento Paixão). Seu Tião é o Gutenberg local. Durante décadas, todas as impressões de Jequitinhonha e arredores passaram por suas mãos. A equipe de resgate cultural da Fundação de Arte de Ouro Preto (Faop) tratou de incluir no opúsculo a letra da marchinha do Boi Janeiro, claro, mais ou menos como foi lembrada pelos mais velhos, o que ajudou um pouco a dirimir divergências entre as velhas e as novas gerações.
Tia Pêpa (Penélope Peixoto Pena, 79 anos neste 2006), moradora de um dos casarões antigos mais lindos da cidade, não estava no ensaio geral. Ex-professora primária, Tia Pêpa possui mente fértil, transbordante de curiosidades sobre o público e o privado jequitinhonhense (ao todo, 23 mil habitantes; 7 mil na zona rural). Ninguém sabe das coisas do jeito que ela sabe. No livro que escreveu sobre a história de sua cidade natal, sublinho:
…Lá pelo ano de 1934, foi criada a folia do Boi Janeiro para festejar os Santos Reis, sendo aqui entre nós comemorado de 1º a 6 de janeiro. Um moço alegre, de espírito folião, teve uma luminosa idéia de iniciar essa tradição. Para isso, fazia-se a cobertura do corpo de madeira com um pano de chitão, e aproveitava-se a carcaça da cabeça de um boi sacrificado. Esse folião chamava-se Olinto Barretão…
– A letra do Boi foi mudando com o tempo – diz Tia Pêpa, em sua casa imensa.
– O povo já dizia/ que Janeiro não saía/ Janeiro tá na rua/ com prazer e alegria. (este trecho, por acaso, resistiu ao tempo.)
A propósito, parece que o coro e os músicos pegaram ritmo, finalmente:
– Boi, boi, boi malabá/ Levanta Janeiro/ Pra nós vadiá…
Sim, agora vai. O Boi e a Nêga levantam, bamboleiam-se e saem pela rua em direção à praça de eventos, onde o resgate será celebrado. No calçamento pé-de-moleque, Leonardo se move em marcha-a-ré, de olho no desfile das criaturas que ele criou. Não canta nem exalta, apenas incentiva. Pede garra à turma o tempo todo.
Leonardo (Pereira de Almeida) é conhecido de muita gente aqui. Leonardo, Leonardo… Num é aquele que… Aquele do… O da… Na verdade, acho que poucas pessoas realmente o conhecem, talvez porque ele tenha passado muito tempo fora da cidade.
Encontrei-o em frente ao Mercado Municipal na cinzenta manhã da mesma sexta – sob 23 graus centígrados (“fria” para os padrões do semi-árido). De lá seguimos até o restaurante vazio do Hotel Bela Vista, à beira do Jequitinhonha. Sentamos. Ventava um pouco. Dizem que, nas cheias, a margem do rio lambe a amurada do hotel, perto de onde estamos.
Leonardo usava uma camiseta regata estampada com duendes tocando roquenrrol. No peito, pendurara um medalhão prateado (com a efígie de Cristo). No ombro direito, uma tatuagem de dragão.
Cumpridor, ele vive se achando e se perdendo. As rugas precoces de batalhador e a barba rala tipo cactos meio branca poderiam nos enganar sobre a sua idade.
– Tô na metade da minha estrada – diz ele, debochadamente, referindo aos seus 46 anos (neste 2006).
Uma hérnia de umbigo adquirida ao longo de duas décadas como servente de pedreiro na capital paulista tirou-o um pouco de jogo.
– Não sou mais o mesmo. Peguei muito peso, bati muita laje, entende? Hoje num agüento mais cantá o Boi sete noite seguida. Não dá. Também não consigo mais carregá peso, entende? Dói.
Esbelto e energético, boêmio e namorador. Dizem que Leonardo é exímio na Arte Maior (a arte de gozar a vida). Durante a oficina do Boi Janeiro, que ele ministrou, revelou-se um artesão de alta categoria, capaz de soluções estéticas incríveis. Para criar os bonecos alegóricos da festa do Boi, usou madeira, metal, borracha, PVC, ossos, corda, gesso, químicos, panos e dezenas de objetos domésticos prestáveis e imprestáveis.
– Boi Janeiro é uma festa, entende? É Carnaval fora de época. É arte. Pra mim.
Vinte anos atrás Leonardo era dono de um botequim na rua Capim Gordura, hoje uma “rua de família” com o nome de Imaculada Conceição.
– Gosto do Boi porque, com ele, o povo sai na rua.
– Quem bancava suas festas, antes?
– Eu mesmo. Até as mulheres eu vestia por minha conta – revela o astuto. – Cê tá me entendendo?
– Sete noites sem parar?
– Sete noites. De 31 de dezembro a 6 de janeiro. A gente saía com o Boi e a Nêga às sete da noite. Não tinha hora de parar.
Leonardo mora nos fundos, ou melhor, na parte de trás de, quero dizer, na rua que dá fundos para… um bordel hoje meio desenxavido.
– Cara, minha casa é uma mistura. Atelié e bar, restaurante e boate. Cê entende? Tem artesanato de argila, de madeira, de vidro; tem carrancas, tem nêgas-malucas; tem viola, acordeom, pandeiro, vaca atolada, caipirinha…
– Você vive de festa?
– Não.
– De artesanato?
– É o que eu queria. Mas não dá. Quebro galho fazendo poda, jardinagem, escultura de planta em jardim, cê entende? E umas outras coisas.
Seu ateliê-casa já esteve cheio de meninos pobres também. Gratuitamente, Leonardo lhes ensinava a fazer artes com argila.
– Mas a argila peneirada passou a custar R$ 2,00 por quilo. Não deu mais pra bancar sozinho. E ninguém apoiou.
Leonardo desembarcou em Jequitinhonha aos treze anos. Em Rio do Prado (MG), onde nasceu, foi desossador no mesmo açougue em que trabalhou seu pai.
– Valha-me Deus/ minha Nossa Senhora/ No meio da rua/ Janeiro deu tora/ Ai, ai, ai, Janeiro morreu/ Ai, ai, ai, Janeiro morreu.
Seu Tião (Gutenberg), primeiro me diz “ah, o Leonardo, sei quem é, sim”. Mas não parece saber, não. Sua memória é estranhamente imperfeita para as coisas que não lembra ao certo, mas preciosista para tudo o que lhe interessa, como cinema, música, pintura, bicicleta, rádio, avião, binóculos, tipografia e frases.
– Aqui, a gente tira a dedo as pessoa que gosta de cultura, comprendeu? – diz Seu Tião, incluindo-se.
As paredes de sua oficina filosofam em voz alta:
…O Bem e o Mal do mundo não estão nas coisas e sim nas pessoas.
…Quase tudo o que nos falta é o que não sabemos dar.
…Recebemos três educações: uma dos pais, uma dos professores
e uma do mundo.
…A maneira mais fácil de ganhar dinheiro é parar de perder.
…De todas as mentiras, a arte é a menos falsa.
…Duas coisas que indicam fraqueza: calar quando é preciso falar e
falar quando é preciso calar.
– Tá tudo aí, num tá? – Ele arremata.
Durante horas ele me facilitou entender que a extinta profissão de tipógrafo foi eterna enquanto durou. No contexto de sua história pessoal, a tipografia se misturou aos seus diversos interesses culturais, mais especificamente com o cinema.
Sim, o cinema. Gutenberg também já foi o Homem do Cinema em Jequitinhonha, cidade a 700 quilômetros de Belo Horizonte. Aprendeu a atividade de operador cinematográfico com o pai, o carpinteiro Primitivo Bento da Paixão. Ah, aquela máquina de filme de 16 milímetros da RCA Victor era um colosso, não, Seu Tião? Antes de pôr o filme na máquina, Primitivo revisava-o. Verificava se havia defeitos na película.
– Não revisava com a mão, não – explica. – Pra revisá, meu pai tinha de passá o filme todo. Então ele via tudo que era filme que chegasse aqui. E eu também.
Entre uma coisa e outra, lá estava o menino Tião dentro do cinema com o pai, que também era porteiro, bilheteiro, faxineiro, tudo.
– No tempo de meu pai, o cinema era na rua Olinto Martins, perto de onde funciona hoje a Rádio Santa Cruz [uma rádio AM que mal se vira].
Cada dono punha no cinema um nome diferente. Primeiro foi Cine Jequitinhonha, por volta de 1945.
– Depois chamou Itaúna, Alabama, Pax…
Um rádio Philips Six Band 695 sintonizado na Rádio Itatiaia, de Belo Horizonte, é a trilha sonora de nosso encontro. Ele improvisou uma antena externa acoplada a um cabo de cobre que se liga a uma bobina de fios finos como os de uma cabeleira. É assim que capta as ondas da capital.
O fim do cinema em Jequitinhonha ocorreu mais ou menos em mil novecentos e… oitenta… e… poucos.
– Sabe como é, o sinal de TV foi melhorando, então, pra que ir ao cinema? – Comenta, sem mostrar resistência ou desaprovação.
O que o tirou do cinema, na verdade, não foi exatamente a TV. A TV foi apenas cúmplice de uma guinada importante na vida de Seu Tião, marcada pela troca do projetor RCA de 16 mm por um de 35 mm. Aí a coisa complicou para ele.
– A máquina de 16 eu podia carregá. Passava filme até na minha casa, num fundo de parede branca. Um filme podia sê mostrado na praça ou em qualquer lugar. A de 35 mm, não. Era pesada, esquisita. Depois que mudou pra 35 mm eu passei a mexer só com a publicidade [dos filmes].
Eis o elo entre sua tipografia e o cinema: além de ver filmes de graça, Seu Tião usava sua prensa F.M.Weiler para produzir os folhetos que anunciavam as sessões.
Desse jeito: “7-7-77/ duas sessões/ Cine Itaúna/ 18:45/ 20:45/ O morro dos ventos uivantes/ A mais bela história de amor até hoje filmada”.
Ou assim: “Cine Itaúna/ dia 7 em 2 sessões/ dias 8 e 9 às 20h/ baseado no famoso best seller mundial de Clay Blair Jr./ Os sobreviventes dos Andes/ (Survive)/ com Hugo Stiglitz”. (Este folheto não tem o ano mas ele se lembra: 1978. Nessa época, alguns aqui já tinha televisão, mas era precário, e só pegava a Globo.)
Os panfletos eram distribuídos no mesmo dia da sessão. Às vezes, Seu Tião fazia o panfleto no mesmo dia, em papel jornal, como aquele usado pela Faop para imprimir o opúsculo com as canções que falam da cidade.
Ah, claro, a máquina, a máquina. A F.M.Weiler de Seu Tião deve ter uns cem anos. Ela suporta apenas papel tamanho ofício, no máximo, e por isso “é mais própria pra cartão de visita”. Foi uma das primeiras a operar em Araçuaí. Seu Tião ainda era de menor quando a recebeu como presente dado por um ex-deputado da região chamado Antônio Peixoto Lucena Cunha.
Atenção, computernautas: no tempo da tipografia, o segredo era saber compor as letras. As letras eram (são?) compostas de trás para frente e de cabeça para baixo. Seu Tião levou umas três horas para compor, por exemplo, letra por letra, um poema de quatro estrofes com quatro versos cada. Parece estamos no século dezenove, mas não estamos, não. Estamos no vinte.
– Vinte anos atrás eu tinha até ajudante aqui, comigo. Era muito trabalho. E no tempo do cinema eu fazia também os folheto de propaganda. Os meninos ganhava uma entrada em troca de distribuí os folhetos. E eles entregava mesmo. Num brincava em serviço, não.
Como tipografar? Assim: primeiramente compor. Composição é juntar as palavras, letra por letra, e as linhas de texto, de trás para frente e de cabeça para baixo. Para isso, usa-se uma peça chamada componedor. Depois da composição, o segredo é formar a chapa. Instala-se a chapa na F.M.Weiler, que possui um disco untado por Seu Tião com uma tinta pastosa raleada por umas gotas de olho de linhaça. Na rama, vão as letras, que são de chumbo fundido. As ramas não se guardam, nem se arquivam. Cada coisa era uma coisa.
– Uma vez uma rama desmontou. Quase chorei.
As letras (ou tipos) vão perdendo as quinas com o tempo. Sem as quinas, a pressão sobre o papel diminui. A impressão sai raquítica. Vejo que os tipos de Seu Tião estão mesmo um tanto desgastados.
Até os anos setenta, Seu Tião (neste 2006 ele completou 68 anos) produzia blocos de notas, cartões de visita, panfletos, bloquinho para garçons, cartão quadriculado para crediário, convites de casamento etc. Gente de Joaíma, Felisburgo, Rio do Prado, Itaobim e outras partes de um mundo vasto faziam-lhe encomendas.
– Sou o único tipógrafo que existiu aqui.
A perda de visão e os novos tempos agora o atrapalham a lidar com os tipos minúsculos. Mas não o atrapalha pintar, por exemplo.
– Sou artista plástico. Tenho uma tela de 80 X 50 cm em Frankfurt e outra na Holanda. Dois óleo sobre tela. Criação minha. Frei Eliseu foi quem levou. Frei Eliseu é um alemão que passou por aqui. Foi pároco aqui.
Por prazer, Seu Tião pinta paisagens com casinhas de roça, bois, árvores, córregos, trilhas. Costuma levar binóculo à zona rural para gravar na mente imagens pitorescas do campo. Um amigo compadre o acompanha. Os dois vão de bicicleta.
A velha bicicleta de Seu Tião, diga-se, é uma extensão dele próprio. Tem retrovisor, banco de assento almofadado em náilon, campainha manual, pára-lamas extras de borracha. Noto que, no pára-lamas dianteiro da bicicleta, ele pintou um escudo redondo no qual aparecem as iniciais SBP.
Puxa, é o mesmo escudo que está na cabeça do anel que ele mandou fazer com uma lasquinha de ouro comprada no Mercado Modelo, em Salvador! Andando pela cidade, percebo que o escudo SBP, como aquele das asas do morcego de Gotham City, é a assinatura que Seu Tião coloca nas faixas, letreiros, cartazes de escolas e muros. É isto o que ele faz hoje em dia para sobreviver. (Só não sobe mais em escadas porque, a essa altura, as alturas o preocupam.)
Seus mil gostos incluem as músicas de Frank Purcell, Paul Murriat, Românticos de Cuba (esse aí é meu fraco!). Em vinil, porém, os seus maiores são, pela ordem: Nelson Gonçalves, Nat King Cole e Frank Sinatra. Nisso, não transige.
– Sou parado em aviação também. Toda vida fui. Quando fui em Belo Horizonte, levei meu binóculo alemão de lente azulada pra ficar olhando os aviões. Acho avião uma coisa assim… Incrível. Diferente, espetaculá. De vez em quando, passa aqui no céu jato de linha longa. Vejo pela fumaça (mas não é fumaça, é a condensação do ar, eu sei) e então pego o meu binóculo.
– O senhor já voou?
– Tenho vontade de voar em jato grande. Em aviãozinho bimotor não.
Seu Tião me olha por cima dos óculos. Sorri com uma certa ingenuidade consoladora, tocante.
Ele nasceu em Jequitinhonha mesmo. Lembra que teve várias oportunidades de partir para outra, mas não encarou. Diz que se arrepende disso até hoje. Na solenidade em homenagem ao resgate do Boi Janeiro, na praça de eventos, sua participação foi discreta. Parece que se intimidou entre os faladores contumazes. Nem parecia o mesmo sujeito com quem passei horas emendando um assunto no outro, sem trégua, ao longo de uma tarde.
Já seu conterrâneo e contemporâneo Francisco Rodrigues de Oliveira, o Chico Canoeiro (67 anos neste 2006), não desperdiçou a chance. Pegou o microfone, agradeceu, valorizou seu grupo de batuque e pediu mais vida para o ex-Grande Rio Jequitinhonha, que estava a alguns metros de todos nós, em plenas condições de nos ouvir, portanto. O ex-Grande Rio deve ter ficado emocionado com os versos da cantiga composta e entoada por Chico Canoeiro:
– Rio Jequitinhonha, você é um Salvador/ Existe muitas família/ Foi você que criô… Nasce em Diamantina/ Corre até Nazaré/ Criando os seus peixinho/ Traíras e timburés… Rio Jequitinhonha, eu tenho pena de te vê/ Teus riacho tão secano/ Que segurava ocê/ Agora teus canoeiros, não pode mais voltá/ Naquelas praias bonita, que cantava beira-mar… Rio Jequitinhonha, tua água era cristalina/ E agora ela tá assim/ Isso é pipoqueira, que tão jogando em mim.
O rio Jequitinhonha nasce no Serro, passa em Itinga, Itaobim, Jequitinhonha, Almenara, Jacinto, Salto da Divisa (ainda em Minas, bem na fronteira com a BA) e Belmonte (BA), quase à beira-mar. O apelido canoeiro vem de sua profissão (batucar ainda é um lazer). Durante décadas Seu Chico conduziu canoas. Até há pouco tempo, o transporte de cargas e passageiros no trecho Jequitinhonha-Araçuaí era feito em canoas compridas e estreitas, de madeira, tendo um mastro a sustentar uma grande vela que auxiliava a navegação contra a corrente, conforme os desígnios do vento. As canoas levavam de tudo: gentes, mercadorias, animais, cartas de amor.
– Dava pra subi o rio só com a força do vento. Na frente da canoa, ia dois proero, cada um com uma vara grande, pra empurrá rio acima; rio abaixo os dois proero descia, tocando voga.
Cada lugarejo, um porto. Cada porto, uma entrega, uma carga, uma carta, um encontro. Num passado distante, muitos canoeiros pescavam, comiam e moravam dentro das canoas. Dormiam debaixo do “Boi” (ahã), uma cobertura de cana-brava com um encerado esticado sobre a canoa para proteção do sol e da chuva.
– Meu avô, pai de meu pai, guiava canoa carregada de carne-seca. Mas meu pai criô família como pilotero – lembra Seu Chico. Piloteiro era o que ficava no leme da canoa. – Pilotero num pegava muito no pesado. Os proero, sim, esses tinha de fazê muita força.
– O senhor viajou de canoa quando criança?
– Nas férias de escola meu pai me levava com ele. Me punha no topo da carga. Pra mim era toda a alegria vê o rio de cima…
O Jequitinhonha está assoreado até à alma. Tem apenas um terço do volume de água que tinha cinqüenta anos atrás, quando era mais estreito, profundo e facilmente navegável em vários trechos. Em suma: muita areia e pouca cheia.
– Trinta anos atrás a água era mais clara, Seu Chico?
– Era. – Às margens do rio, o baixinho Chico Canoeiro fica em silêncio alguns segundos, meditativo. E completa: – Os modo do rio hoje é otro.
– Por que ficou assim?
– Porque tudo nesse mundo tá encurtano…
Escrito em 2006 para o projeto Resgate Cultural do Jequitinhonha, coordenado pela Fundação de Arte de Ouro Preto (Faop).