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Em cena, dois personagens – Jaime e Hugo – de gerações distintas, e o caminho que os aproxima está palmilhado de ambiguidades
Jornal “Hoje em Dia”
Patrícia Cassese
Involuntariamente – ressalte-se – Sergio Vilas-Boas foi se afastando da escrita ficcional. Com mais precisão, desde “Os Estrangeiros do trem N”, de 1998. Desde então, o também jornalista e professor se enveredou em projetos das mais diversas naturezas – reportagens, biografias, perfis e ensaios – que, sem dúvida, amplificaram seu nome, ainda que não a ponto de sepultar o interesse em fazer as pazes (digamos assim) com a ficção.
A reativação deste motor chegou ao mercado em maio último: “A Superfície Sobre Nós” (Editora Amarilys). O título em questão ganha sessão de autógrafos na capital mineira neste sábado (29/8) – a partir das 11h, na Quixote Café e Livraria.
Em cena, dois personagens – Jaime e Hugo – de gerações distintas. O caminho que os aproxima vem palmilhado de sensações ambíguas. Ao “Hoje em Dia”, Sergio conta que Jaime, antropólogo, pertencente à geração Baby Boom, é fruto de um “experimento” de natureza autobiográfica feito cerca de dez anos atrás e posteriormente abandonado.
O rascunho, porém, lembra, foi guardado e recentemente revisitado, junto a outro que, por seu turno, se debruçava sobre a chamada Geração Y. E veio a ideia de imbricar as duas tramas. O que não foi tarefa das mais fáceis. “Eram textos que não dialogavam, unilaterais. Tive que achar pontos de contato, e um deles foi a diferença geracional. Sou professor, lido muito com jovens “tecnológicos”; e eu próprio pertenço a uma geração de transição. A gente se adaptou, mas não somos digitais. Migramos, mas sabemos como a vida era antes, e isso faz grande diferença. Daí percebi o fascínio mútuo”, esmiuça Sergio, para quem o pulo do gato é o texto não fechar questão sobre nada.
Como a história de “A Superfície Sobre Nós” foi se esboçando em sua mente?
Encontrei tempo em minha vida e forcei a existência dela (história). Ao dar uma revisada nos meus arquivos, encontrei esse texto, que chamei de um experimento autobiográfico, bem como o esboço de um conto sobre um jovem da chamada Geração Y, tão falada. Entre tantos textos, peguei esses dois e lhe dei “força”. Então, o livro tem um quê de autobiográfico, uma vez que vou fazer 50 anos em novembro, e, portanto, pertenço à geração de Jaime, o contraponto do enredo. O narrador é um jovem, que fica conhecendo esse sujeito de idade e características geracionais distintas. Descobri que o que eu poderia fazer era trabalhar essa relação inusitada, mas nada a ver com uma relação do tipo mestre-discípulo. Eles se envolvem, mas o relacionamento deles é pautado tanto pelo fascinio mútuo quanto pela estranheza.
Como professor, como analisa essa chamada Geração Y?
Acabo me envolvendo com boa parte dessas pessoas pela frequência dos encontros (como professor) e vice-versa. Há muitos distanciamentos, claro. A minha geração tem uma capacidade de concentração maior, e as novas, certa dificuldade em focar. Há, portanto, um distanciamento que precisa ser calibrado para se encontrar um ponto de equilíbrio. Por conta da atenção fragmentada, mas também pela vontade do jovem de estar em toda parte, percebo certa incapacidade de reflexão. Quando jovem, a gente acreditava em coisas como o socialismo e a derrubada do “Sistema”. Hoje, as pessoas estão mais interessadas em questão hiperfocais, o que também é importante, sem dúvida, mas não raro tudo termina picotado e perdido. Hoje. é possível haver tribo de um só. Não quero que esse estranhamento seja muito diferente do da minha geração para as anteriores, mas a tecnologia transformou mesmo muita coisa. Para você ter uma ideia, sou viciado em privacidade. Para mim, é impensável opinar loucamente nas redes sociais sobre qualquer assunto, talvez até pelo fato de ser jornalista, de me preocupar com a informação, com a apuração esmerada, que não é a tônica de hoje. Na verdade, acho que as redes sociais, hoje, são mais um jogo de afagos entre o emissor e seus seguidores do que um canal de debate.
Você ficou muito tempo longe da ficção. Sentiu uma espécie de chamado?
“Os Estrangeiros do Trem N”, escrito há 18 anos, não foi um grande mergulho ficcional. Era um romance, mas era uma história realista, fruto de muita pesquisa, muita contextualização. Em seguida, por motivos profissionais, tive que calar aquele chamado, e aquilo estava me incomodando bastante. Não conseguia engatar um projeto e conclui-lo. A não-ficção é fascinante, mas a liberdade de oferecer uma interpretação mais ficcional é mais fascinante ainda. Foi uma grande renovação. Não quer dizer que vou abandonar a não-ficção. Apenas me sinto mais livre para transitar pelos dois universos, o que, para mim, é relativamente “fácil”. Sinto que conheço bem os limites e as possibilidades de ambas.
“A Superfície Sobre Nós” foi lançada em maio. E você está no processo de divulgação. Já está se dedicando a outro projeto?
Desde o final de novembro de 2014, enveredei pela escrita de outro romance, agora tentando aproveitar aquele arcabouço de ideias inconclusas. Tive uma centelha interessante, que estou trabalhando nas horas vagas. Na verdade, neste segundo semestre [de 2015], me dei de presente um “sabátíco”. Seis meses, talvez mais. Estava esgotado. Se conseguir dedicar umas quatro horinhas por dia ao novo projeto, será ótimo. O fato é que, desta vez, não vou deixar passar 18 anos (referindo-se ao hiato entre o romance anterior e o lançamento de “A Superfície Sobre Nós”). Fui tirando algumas coisas do caminho. O tempo é uma conquista. Sem um tempo adequado, não dá para exercitar uma escrita, digamos, mais artistica (29/08/2015).
Sergio Vilas-Boas é jornalista, professor e autor de vários livros. “Perfis: o Mundo dos Outros” (Manole) é uma de suas obras mais jornalísticas; e “Biografismo: Reflexões sobre as Escritas da Vida“ (Unesp) está entre as suas principais produções acadêmicas.
“A Superfície Sobre Nós” (e-book)
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