Em “Operação Massacre” (1957), impressionante narrativa sobre homens aprisionados sem provas e fuzilados sem julgamento, o argentino Rodolfo Walsh mesclou investigação, jornalismo e literatura, nos moldes de “A Sangue Frio” (1966). Mas sua aceitação não foi rápida e estrondosa coma a de Truman Capote
Sergio Vilas-Boas
“Rascunho“, janeiro/2011
Todas as formas jornalísticas são investigativas. Mas a expressão “jornalismo investigativo” se refere normalmente à vigília dos poderes públicos, principalmente a banda podre. Se nesse escopo estivessem incluídos os “poderes privados”, o próprio Quarto Poder teria de ser vigiado com procedimentos mais amplos que os de um ombudsman e menos ideológicos que os das organizações de media watch. Mas não é bem assim.
Já o bom Jornalismo Literário, embora construído com pesquisa e conversação intensivas, não costuma ser comparado ou confundido com o investigativo. Uma resposta possível para essa diferenciação seria a que o JL possui uma característica intrínseca extra: a linguagem artística. O literário e o investigativo, porém, coexistem há séculos e, a priori, nada impede um repórter de fundir os dois conceitos numa mesma reportagem.
“Operação Massacre”, do argentino Rodolfo Walsh, 23º título publicado na coleção Jornalismo Literário da Companhia das Letras, é uma clássica mescla de investigação de atos do Poder Público com o uso deliberado, calculado, da expressão literária. Quase dez anos separam esta obra do icônico “A Sangue Frio” (1966), de Truman Capote. Mas “Operação Massacre”, embora publicado antes (1957) daquele, é bem menos conhecido no mundo.
Ao contrário de Capote, Walsh escreveu o seu relato-denúncia durante um regime de exceção, quando as liberdades democráticas na Argentina estavam suspensas. Enquanto “A Sangue Frio” contou com um plano de marketing arrojado e uma revista de grande circulação (“The New Yorker”) antecipando os capítulos, as reportagens e posteriormente o livro de Walsh foram sistematicamente rejeitados devido ao seu explosivo conteúdo político.
“Operação” reconstitui as horas que antecedem a prisão (antes da meia-noite do dia 9 de junho de 1956, fato importantíssimo) de pelo menos doze homens, seus fuzilamentos e o processo judicial movido por um dos sobreviventes. Como a imprensa tradicional ignorava o caso, Walsh acabou conseguindo publicar sua série no periódico “Mayoría”, de pequena circulação, entre maio e junho de 1957.
Para absorver plenamente a narrativa é preciso conhecer o contexto histórico que a gerou. Em junho de 1956, o peronismo, deposto nove meses antes, fez sua primeira tentativa séria de retomar o poder mediante uma revolta de base militar com algum apoio ativo de civis. Uma proclamação assinada pelos generais Juan José Valle e Raul Tanco fundamentava a rebelião com uma descrição bastante exata do estado de coisas na Argentina da época.
O país, proclamavam, vivia uma tirania impiedosa e cruel. Perseguia-se, prendia-se, confinava-se. “Excluía-se da vida cívica a força majoritária.” Havia ainda o totalitário decreto 4161 (que proibia a simples menção do nome de Perón). Queriam ainda suprimir o artigo 40 da Constituição a fim de impedir “a entrega dos serviços públicos e das riquezas naturais ao capitalismo internacional” e evitar que o país “regredisse à condição abjeta de feitoria colonial”.
A proclamação do general Juan José Valle, embora destituída de hipocrisia, era inconsistente. Sacrificava o conteúdo ideológico em favor do impacto emocional. Propunha em suma um retorno crítico ao peronismo e a Perón através de meios transparentes: eleições em até 180 dias com a participação de todos os partidos. No plano econômico, o programa declarado se contradizia ao assegurar “plenas garantias aos capitais estrangeiros investidos ou por investir”.
“Valle agiu e, como era de se esperar, pagou com a vida, o que é muito mais do que qualquer palavra”, escreve Walsh. A história da rebelião, porém, é curta. Entre o início das operações e a redução do último foco revolucionário passam-se menos de doze horas. Às 21h30 do dia 9 de junho de 1956, no Campo de Mayo, sem a participação popular, um grupo de oficiais e suboficiais comandados pelos coronéis Cortínez e Ibazeta dá início aos ataques.
Naquele momento, a Rádio Estado, porta-voz oficial do governo, transmitia composições de Haydn. Até quase à meia-noite, calcula Walsh, noventa e nove de cada cem habitantes do país ignoravam o que estava se passando no Campo de Mayo, em Avellaneda, em Lanús e em La Plata. Às 23h56, a Rádio Estado parou de reproduzir Stravinsky e pôs no ar a marcha que habitualmente encerrava as transmissões. Essas e outras rotinas constavam do livro de locutores, como era praxe, “à página 51, rubricada pelo radialista Gutenberg Pérez” (outra prova valiosa levantada por Walsh).
Ou seja, a Rádio não pronunciou uma só palavra sobre os acontecimentos subversivos; não se fez a mais remota alusão à lei marcial (segundo a qual revolucionários comprovados poderiam ser executados sem julgamento). Mas, como toda lei, aquela também deveria ter sido promulgada e anunciada publicamente antes de entrar em vigor. Às 24 horas do dia 9 de junho, portanto, a lei marcial ainda não vigorava em nenhum ponto do território argentino.
Mas, no calor dos combates, a tal lei já estava sendo aplicada. Antes da meia-noite alguns líderes rebeldes em ação já haviam sido presos e fuzilados sumariamente. O pior foi que pessoas desarmadas (capturadas sem provas concretas de participação no levante) também foram assassinadas. É o caso de oito homens presos numa casa de Florida, bairro do município de Vicente Lopez, a meia hora de Buenos Aires.
Os oito sujeitos ouviam pelo rádio a luta pelo título sul-americano de boxe entre o campeão Lausse e o chileno Loayza. A casa, na qual entraram primeiramente os personagens Carranza e Garibotti, era na verdade composta por duas. Uma na frente e outra nos fundos. A dos fundos era alugada para um sujeito que seria decisivo na investigação jornalística do repórter. E a da frente pertencia a Horacio di Chiano (leia trecho do livro).
Walsh penou para provar que, quando a luta de boxe se iniciou, estavam na casa Carranza, Garibotti, Díaz, Lizaso, Gavino, Torres, Brión, Rodríguez e Livraga. Por volta das 22h45 aparecem dois desconhecidos. Torres achou que eram amigos de Gavino; Gavino, que eram amigos de Torres. Só mais tarde compreenderam que eram espiões. Estavam ali para sondar se havia armas e verificar se a entrada estava desimpedida.
Minutos depois a polícia invade o local com violência. “Onde está o Tanco?”, “Onde está Tanco?”, repetiam os guardas enquanto davam buscas e espancavam. Entre os ouvintes da luta de boxe havia sim alguns simpatizantes do peronismo, mas nenhum revolucionário. Pior: não escondiam ali general nenhum. Depois de horas apertados numa cela todos são levados a um campo escuro distante do município. É quando pressentem que serão “massacrados”
Mas a incompetência dos policiais em executá-los só é comparável à maneira esdrúxula com que foi conduzido o processo movido por Juan Carlos Livraga, um dos sete sobreviventes. Com identidade falsa (adotou durante a investigação o nome de Francisco Freyre), Walsh acompanhou passo a passo as tramas judiciais para acobertar mandantes e executores.
Durante o julgamento, alegou-se que não existiram fuzilados, e Walsh, sobre este ponto, preenche o absurdo com seu próprio espanto: “Gostaria de pedir ao leitor que não creia naquilo que relatei, que desconfie do som das palavras, dos possíveis truques verbais a que todo jornalista recorre quando quer provar algo, e acredite somente naquilo que afirmou Fernández Suárez [chefe de polícia responsável pelas prisões e fuzilamentos], concordando comigo”.
Isto porque o próprio chefe de polícia, num deslize, declara perante a Junta Consultiva, em 18 de dezembro de 1956, que “com respeito ao sr. Livraga, quero deixar registrado que na noite de 9 de junho de 1956 recebi a ordem de dar busca pessoalmente numa casa… Nessa propriedade encontrei várias pessoas… Entre elas, estava esse senhor”. Em seguida tentam argumentar que as cicatrizes dos ferimentos a bala (na boca, na bochecha e na perna) de Livraga não eram prova de que ele era um “fuzilado”, mas sim um “revolucionário”.
“Houve outras argúcias, desmentidos, comunicados. Desmenti-os, um por um, durante a campanha jornalística. Sua análise já não é necessária. A prova reunida em vários meses de investigação permitiu que eu acusasse Fernández Suárez de assassinato, coisa que fiz incansavelmente, sem que ele se dignasse a querelar contra mim.” Walsh confronta duas investigações sobre o caso Livraga: a sua própria e a do juiz Belisario Hueyo em La Plata.
“Elas praticamente se superpõem e se completam. Em alguns aspectos, a minha era mais detalhada: incluía declarações dos sobreviventes Troxler, Benavídez e Gavino, que estavam exilados na Bolívia e não puderam prestar depoimento ao doutor Hueyo; entrevistas com Horacio di Chiano, Torres, Marcelo e dezenas de testemunhas menores que não passaram pelo gabinete do juiz; e uma cópia fotostática do livro de locutores da Rádio Estado, estabelecendo a hora em foi promulgada a lei marcial.”
A tal lei foi promulgada e comunicada à nação pela Rádio Estado às 0h32 do dia 10 de junho de 1956. Portanto, Livraga foi preso quando vigoraram as leis comuns, e, ao prendê-lo, os policiais não o acusaram formalmente de nada. Quem o deteve foi um funcionário civil, Fernández Suárez, o chefe de polícia da província. “Enquanto está preso, Livraga naturalmente não comete crime nenhum. Esse dia acaba – como todos – à meia-noite.”
O argumento central de Walsh é o de que Livraga, preso no dia anterior (antes da meia-noite), não podia ser julgado nem punido senão em conformidade com o Código Penal vigente no momento de sua prisão, que previa garantias, defesa, um juiz natural, um processo. Mas o parecer do procurador e a sentença da Corte resultaram numa sinistra corrupção das normas jurídicas, ocorrência terrivelmente comum em países afundados em violência política.
Esta narrativa incrível nos remete a absurdos kafkianos, com a diferença de que se trata do real. Um real tão insano que não podia ser descrito como ficção. Embora narre fatos que aconteceram de verdade, o relato é eminentemente político e não tem nem mesmo como se misturar com o “realismo”. “O realismo precisa de visão”, afirma com precisão a pesquisadora Natalia Brizuela no posfácio. “‘Operação Massacre’ e outros textos posteriores de Walsh se constituem a partir do que não se vê, do que não se sabe, do impossível, dos mortos que vivem.”
Questão central da obra é a ausência de sentido, o nonsense. Em lugar do detetive Daniel de seus romances policiais (Walsh antes publicara alguns), o investigador aqui é o próprio autor, talvez o primeiro detetive literário da Argentina moderna. (Talento para tal não lhe faltava. Mestre da criptografia, Walsh decifrou um telegrama norte-americano que pretendia ser comercial mas que na verdade continha detalhes sobre a invasão de Cuba pela Baía dos Porcos, em abril de 1961. Graças a esse trabalho, a invasão não tomou Cuba de surpresa e fracassou.)
Nesta obra jornalística magnífica o mítico Walsh trabalhou com afinco e afeto as memórias fotográficas de Livraga e os sentimentos de viúvas, órfãos, conspiradores, asilados, fugitivos, delatores presumidos, heróis anônimos e outros sobreviventes que adotaram identidade falsa ou se exilaram na Bolívia. A apuração é tão minuciosa quanto impressionante.
Com mais de quarenta edições na Argentina, o livro figura hoje entre as obras mais importantes da literatura histórica latino-americana e inspirou autores importantes como Ricardo Piglia. Walsh estremeceu a divisão ortodoxa que separava a literatura e o jornalismo em seu país. Por outro lado, a experiência afastou-o para sempre da ficção e o vinculou à política. Foi dado como desaparecido desde 1977, quando escreveu uma carta de repúdio à Junta Militar golpista encabeçada por Jorge Rafael Videla. (Publicado no jornal “Rascunho”, de literatura, edição de fevereiro/2011.)
TRECHO
Por fim, silêncio. Depois, o ronco de um motor. A caminhonete põe-se em movimento. Para. Um tiro. Silêncio outra vez. O motor torna a zumbir, num minucioso pesadelo de marchas e contramarchas. Num lampejo de lucidez, don Horacio compreende. O tiro de misericórdia. Estão revistando um a um os corpos e executando os que dão sinal de vida. E agora…
Sim, agora chegou a sua vez. A caminhonete se aproxima. O chão, sob os óculos de don Horacio, desaparece em incandescências de giz. Estão a iluminá-lo, estão apontando para ele. Não os vê, mas sabe que apontam para sua nuca.
Esperam um movimento. Nem isso, talvez. Talvez atirem do mesmo jeito. Talvez estranhem justamente que ele não se mexa. Talvez descubram aquilo que é evidente, que ele não está ferido, que não sangra em parte nenhum do seu corpo. Uma náusea espantosa revira-lhe o estômago. Consegue sufocá-la nos lábios. Quisera gritar. Uma parte de seu corpo – os pulsos apoiados no chão como alavancas, os joelhos, as pontas dos pés – quisera escapar enlouquecida. Outra – a cabeça, a nuca – repete: não se mexa, não respire.
Como consegue ficar imóvel, conter a respiração, não tossir, não uivar de medo? No entanto, não se move. As lanternas tampouco. Espreitam-no, vigiam-no, com num jogo de paciência. Ninguém fala, no semicírculo de fuzis que o rodeia. Mas, ninguém atira. E assim se passaram segundos, minutos, anos… E o tiro não vem.
Quando torna a ouvir o motor, quando a luz some, quando sabe que estão se afastando, don Horacio começar a respirar lentamente, muito lentamente, como se aprendesse a fazê-lo pela primeira vez.