Os tablets surgiram antes de os jornais se sentirem confortáveis com as outras notáveis mudanças dos últimos 20 anos
Sergio Vilas-Boas
“Jornal da ANJ”, junho/2010 e abril/2011
Junho/2010. Os e-readers e tablets prometem mudar a maneira de produzir, comercializar e adquirir conteúdos jornalísticos. Revolução? Se sim, ela ocorre antes mesmo de os jornais se sentirem confortáveis com as outras notáveis mudanças dos últimos anos. Salvação? Se sim, não se sabe ao certo (ainda) a forma e o valor. O fato indubitável é que essas devices – do Kindle ao iPad – abrem possibilidades extras para o negócio jornal.
O iPad da Apple é um marco no design de mídias digitais portáteis, leves, amigáveis, nítidas e conectivas. Em pouco mais de um mês (o produto foi lançado no início de abril), vendeu-se um milhão de unidades nos Estados Unidos. Milhares de early adopters europeus e australianos também acorreram às lojas Apple no dia do lançamento mundial, no final de maio.
Até o fechamento desta edição não havia previsão para a comercialização oficial de iPads em países como Brasil, China, Índia e Rússia. Calcula-se que mil brasileiros viajantes tenham um iPad, número talvez maior que o de usuários do Kindle, e-reader criado pela Amazon (a primeira geração chegou ao mercado americano em novembro de 2007). Mas o Kindle levou um ano para atingir a marca de um milhão de unidades vendidas.
Há uma explicação plausível: o Kindle DX (terceira geração), com tela em preto-e-branco, talvez satisfaça o desejo de leitura de livros digitais com foco em texto, não tanto em imagens e movimentos. Mas, para quem não abre mão de “uma experiência mais completa” – como dizem os estrategistas – um tablet como o iPad é irresistível; e o preço também atrai: a versão mais barata custa US$ 499, mais ou menos o mesmo que o Kindle DX (US$ 480).
E-readers X tablets
A principal diferença entre um e-reader e um tablet é exatamente esta: o e-reader é um leitor eletrônico, enquanto o tablet é multimídia. Os dois conceitos não são necessariamente excludentes. Se a expectativa de queda de preço nos próximos anos se confirmar, poderá haver público para ambos. Mas o design e a interatividade dos dois ainda estão distantes do ideal.
“Aparelhos que não permitem acesso fácil à internet, seja e-reader ou tablet, não têm chance de sucesso. A gente espera estar conectado. Afinal, as nossas transações dependem disso”, sublinha Roger Fidler, da Universidade de Missouri, que trabalha com protótipos de novas mídias desde os anos 1970. Para ele, contudo, os leitores portáteis continuam sendo lanche e as mídias impressas, o jantar.
Fidler e outros pesquisadores de designs interativos para tablets estão avaliando o espectro comportamental dos potenciais usuários dessas devices. É o mesmo processo que entreteve os designers do iPhone, que previram as ações das pessoas diante da pequena tela de um aparelhinho multifunções cabível no bolso da camisa.
Em tablets como o iPad, menor que uma folha A4 e com tela sensível ao toque (na vertical ou na horizontal), pode-se navegar na web, assistir a filmes, divertir-se com games, interagir com anúncios de produtos e serviços (fazer uma reserva instantânea no restaurante exibido no anúncio) e ler livros, revistas e jornais.
Com os próprios dedos o leitor seleciona matérias, vira páginas, toca na foto de um jogador comemorando um gol e em seguida acompanha a jogada inteira do gol. Deitado numa rede ou na areia da praia, o usuário atinge facilmente a página de esportes, a de reportagens especiais, as histórias em quadrinhos e pode até fazer as palavras cruzadas.
Desafio para os jornais
Essa nova experiência de interação criada pela Apple é no mínimo um capítulo novo no processo de integração multiplataformas, que já está sendo explorado por jornais brasileiros. O iPad representa também um grande avanço em relação aos smartphones. Com essa bela tacada de marketing, o futurista Steve Jobs sacudiu o mercado editorial como um todo.
“O desafio é usar os e-readers e tablets para vender conteúdos, evitando os ‘erros’ cometidos com a migração para a web. Os efeitos da gratuidade ainda assombram”, alerta Kerry Northrup, da Western Kentucky University. Northrup esteve em São Paulo para evento da Associação Nacional de Editores de Revistas (ANER). “Não permita que essas novas mídias pautem toda a sua estratégia empresarial.”
Northrup foi um dos protagonistas do projeto Newsplex de convergência multimídia da Universidade da Carolina do Sul. Na visão dele, os jornais têm de entregar seus conteúdos com competência, independentemente de os aparelhos estarem fixos ou móveis, de serem pesados ou leves. “O problema central continua: fazer jornalismo de qualidade”, enfatiza.
“Pensem em maneiras diversas de narrar uma história (talvez a mesma história) em vários formatos, pinçando o que há de melhor na apuração e adaptando cada parte ao formato de entrega mais adequado. O que fica melhor em vídeo? O que fica melhor online? O que fica melhor no papel? Os tablets exacerbam essas orientações.”
Para Northrup, o iPad oferece uma experiência diferente de distribuição e recepção de conteúdos, seguindo a linha das mudanças de hábitos de consumo ocorridas na última década. “Nós agora preferimos a flexibilidade à alta fidelidade, a conveniência à beleza, o rápido e amarrotado ao lento e polido. Ter a coisa aqui e agora é mais importante que tê-la em perfeito estado.”
Entrando em nova etapa?
Essas mudanças de comportamento se encaixam no perfil dos usuários de iPads, cujas telas manchadas pelas digitais dos dedos indicadores reafirmam que essas devices serão uma espécie de extensão do corpo humano, como as roupas, os sapatos e os celulares, que, com o tempo, adquirem o modo de ser de quem os transporta para cima e para baixo.
Contudo, o publico ávido por novas experiências digitais é o mesmo que, segundo o designer Roger Fidler, ainda prefere que artigos e reportagens sejam organizados e editados por grandes empresas jornalísticas. “Os jornais digitais altamente personalizados projetados por especialistas não atraíram a atenção esperada”, afirma.
Com os tablets se anunciando como onipresentes num futuro bem próximo, será necessário retrabalhar a ideia de “convergência multimídia”, acredita Northrup. “Convergência não é mais a solução. Deturparam o conceito. Ele acabou sendo utilizado para outros fins, como cortes de custos, corte de pessoal e maior controle sobre a produção”, critica. “Ou seja, o contrário do que deveria ser.”
Northrup prefere o conceito de media fusion, para o qual o treinamento de jornalistas é tão valioso quanto a escolha do conjunto de aplicativos que permitem a edição e a entrega dos conteúdos. “Não presuma apressadamente que você tem de oferecer a edição inteira do seu jornal ou revista num tablet”, adverte.
“Faça tudo sempre pensando na matéria, no assunto e no público potencialmente interessado”, continua. “Quem está interessado neste assunto? Onde essas pessoas estão? Como encontrá-las? E não leve muito a sério quem lhe disser que tem as respostas certas para estas e muitas outras perguntas. Estamos entrando numa nova etapa.”
Mais que uma plataforma
Na era dos tablets, o maior desafio dos jornais será reestruturar suas operações para se adaptar às novas ferramentas, aos novos comportamentos dos usuários e à entrega de conteúdos em múltiplas plataformas. Especialistas sugerem que os fluxos de produção para as várias mídias continuem no caminho da unificação e da integração.
O iPad é uma realidade tanto quanto uma promessa. Espera-se que a nova device da Apple seja um conjunto de novos canais de distribuição para pacotes multimídia. Mas, para estar dentro de um iPad, é preciso construir esses pacotes. “Estudem imediatamente um modelo de negócios sustentável antes de apostar nos tablets”, sugere Kerry Northrup, da Universidade de Missouri.
Na verdade, a Apple está fazendo mais do que simplesmente vender uma nova plataforma de mídia. A empresa de Steve Jobs está também alavancando a venda e utilização de seus aplicativos. Por outro lado, o sistema todo só poderá se expandir se houver um diversificado ecossistema de conteúdos App à venda.
“O mercado, no caso, será definido pela Apple e o ponto de vista da empresa ainda é desconhecido”, advertem as consultorias internacionais de mídia. O iPad e outros tablets que estão a caminho constituem tanto uma oportunidade de receita quanto um mostruário para o negócio jornal. “No entanto, os tablet sozinhos não são a salvação do jornal como negócio”, alertam os consultores.
Os designers de plataformas para tablets estão apostando num aparelho portátil com bateria de longa duração, tela plana de alta resolução, conexão sem fio e preço abaixo de US$ 500. As consultorias internacionais, por sua vez, acreditam que a necessidade de conectividade tende a ser um empecilho à rápida universalização dos tablets.
Cinco mil anos de aperfeiçoamento
O arquiteto digital Roger Fidler, da Universidade do Missouri, aposta na massificação por meio do modelo “documento”. O livro, a revista e o jornal são todos resultado de 5 mil anos de adaptação nossa ao “documento”, diz ele. “Nesse sentido, os tablets não são mais que a última encarnação de algo que vem de muito longe.”
Fidler tem visitado fábricas de tecnologia de tela plana na tentativa de persuadi-las a criar um produto que “encarne” as necessidades dos jornais. No Japão, grandes marcas como Sharp, Sony, NEC e Matsushita estão desenvolvendo tablets. Nos Estados Unidos, a ATT e a Motorola, entre outras, entraram no jogo.
Mas para ter sucesso no mercado de consumo geral será necessário um tablet esbelto que: pese menos de um quilo; tenha resolução equivalente à da tinta em papel; dialogue com outras máquinas; seja touch screen; use bateria com vários dias de duração; possua ampla capacidade de armazenamento e tela vertical que lembre os “documentos” com os quais lidamos no dia-a-dia.
Ray Pearce, diretor de circulação do “The New York Times”, acrescenta à lista as seguintes características: conectividade ubíqua, possibilidade de download a qualquer tempo, design convidativo à leitura, ágil e-commerce (poder comprar algo com um único toque) e múltiplas formas de se criar um ecossistema de anúncios que se retroalimente.
Apesar das derrapagens na migração para o online, a luz continua brilhando no fim do túnel. O tablets apontam uma direção diferente para o mercado editorial. As versões digitais das revistas “Time” e “Wired”, por exemplo, puderam ser baixadas no iPad nos últimos meses por US$ 4,99 cada edição.
A diferença crucial entre o jornal e a revista em tablets talvez seja a periodicidade. Acredita-se que seja mais “simples” em periodicidades semanal e mensal. Embora a entrega dos conteúdos tenha um custo bem mais baixo (não se gasta óleo diesel, papel, tinta etc.), será necessária grande agilidade para oferecê-los aos usuários de tablets dia após dia.
Por uma estratégia comum
O consultor da ANJ, Antonio Athayde, que trabalha com computadores desde 1965, considera “inegavelmente lúdica” a experiência com um iPad. “De certa forma, é divertido compará-lo com as centenas de equipamentos que o precederam. Mas, pessoalmente, acho que daqui a alguns meses os tablets com sistema operacional Android vão surpreender. O iPad nada mais é do que um fruto da cabeça do maior gênio do marketing da atualidade”, comenta.
A ANJ reuniu um grupo de técnicos dos principais jornais do país para rodadas de discussões que poderão levar a uma estratégia comum de abordagem do relacionamento do meio com as “lojas” nas quais os aplicativos para e-readers e tablets são vendidos. “Tal estratégia poderá vir a ser utilizada por um grande número de jornais associados.”
O conceito de que tudo na internet tem de ser oferecido de graça, principalmente a informação, prejudicou o negócio das empresas de comunicação, concorda Athayde. “Reverter isso é um enorme desafio. A questão de como enfrentá-lo ainda não está clara. Talvez a única certeza seja a de que só com atitudes coletivas se chegará a um resultado mais rapidamente.”
As mudanças no fluxo de produção dos jornais, anteriores à chegada dos e-readers, resultaram em redações integradas que geram edições para internet e para papel. “Jornalistas talvez sejam os profissionais que tiveram sua rotina mais afetada pelas recentes inovações tecnológicas na área. Mas os e-readers são apenas mais uma plataforma de distribuição.”
Não faltam softwares e aplicativos para criar e inserir pacotes de conteúdos nos tablets. Um deles é o holandês Woodwing, vendido no Brasil pela Epyx Soluções Editoriais. O Woodwing foi utilizado em conjunto com o Adobe InDesign para a geração do App da revista “Time”. O desenvolvimento do projeto demorou cinco semanas, incluindo o tempo de aprovação na Apple.
“Há um punhado de softwares à disposição para inserção de edições nas mais diversas tecnologias de distribuição de informação. Algumas dessas tecnologias são oferecidas por empresas brasileiras, e o grupo técnico da ANJ também está avaliando isso”, adianta Athayde. “Os tablets oferecem recursos de convergência entre texto, áudio, vídeo e navegação na web, trazendo mais oportunidades criativas aos editores.“
Abril/2011. Um ano após o lançamento da primeira geração do iPad os jornais brasileiros começam a ter uma noção dos limites e possibilidades dos tablets. As percepções mais evidentes: esse tipo de “device” veio para ficar e em breve estará tão presente na vida das pessoas quanto os celulares e os PCs; a base de usuários no Brasil, embora pequena, vem crescendo rapidamente; a maioria dos jornais brasileiros de médio e grande porte oferece aplicativo na loja Apple; as principais empresas jornalísticas do país estão preparando o lançamento de edições pagas no iPad; a geração de receita com tablets parece muito mais palpável que no online e nos smartphones. A seguir, algumas percepções marcantes sobre esse assunto:
1. Crescimento do mercado de tablets aponta para diversificação
O primeiro jornal feito exclusivamente para o iPad, o “The Daily”, da News Corporation, grupo de mídia de Rupert Murdoch, que acaba de sair do forno, é um marco simbólico da evolução do “produto jornal”. “Estamos no início da curva de aprendizagem e há um grande campo de experimentações pela frente. A experiência de consumo de informação no iPad pode ser muito rica e agregar ainda mais valor ao conteúdo que produzimos. Isso abre grandes possibilidades comerciais”, acredita Guilherme Vieira, gerente de plataformas digitais da “Gazeta do Povo”.
Guilherme espera que os leitores atribuam valor não apenas ao conteúdo, mas também à interatividade, “de forma análoga ao que ocorre na indústria do cinema”. “Há muita gente disposta a pagar mais para ver determinado filme na versão 3D, por exemplo”, compara. “O conteúdo é o mesmo, porém entregue de maneira mais elaborada. Isso vale também para a publicidade. Em termos editoriais, além da ampliação na quantidade e na forma (com vídeos e infográficos agregados às matérias), experimentaremos aplicações para interação tanto online quanto off-line.”
O Grupo Folha não encara o iPad como iniciativa isolada. “O crescimento do acesso a conteúdos por meio de dispositivos móveis é um movimento semelhante ao de pouco mais de uma década com a criação dos sites jornalísticos na internet”, analisa Ana Lucia Busch, diretora-executiva de novas mídias da “Folha”. “O conhecimento acumulado com a distribuição de conteúdos para outras plataformas digitais será importante nos experimentos. Estamos mais preparados para vender formatos novos para tablets.”
Há outros sistemas operacionais disponíveis além do da Apple (utilizado nas duas gerações de iPads e nas quatro de iPhones). O Android (do Google) tende a ser o principal concorrente, podendo até ultrapassar a Apple, como já ocorreu no mercado de smartphones; o Windows Phone (da Microsoft, em parceria com a Nokia) é uma promessa; e a plataforma RIM, utilizada no Blackberry, apresenta bom potencial de aplicação e expansão.
A concorrência entre plataformas reflete a diversificação do próprio mercado de tablets, impulsionado pelo sucesso do iPad. A primeira geração do Galaxy Tab, da Samsung – com plataforma Android, tela menor que a do iPad e câmera –, por exemplo, é fruto de uma efervescência notável na demanda. No final do ano passado havia trinta modelos de tablets à venda nos Estados Unidos, o que fez a Panasonic, a Motorola e a Lenovo anunciarem que também disputarão uma fatia desse mercado.
Segundo a consultoria PRTM, 64 empresas estão fabricando e/ou desenvolvendo tablets, e os 17 milhões de aparelhos vendidos ano passado levaram os estrategistas a prever que até 2014 esse segmento atingirá a marca de 200 milhões de unidades. Essa projeção é quatro vezes maior que o previsto para o mercado de smartphones e cinco vezes maior que o potencial de crescimento dos PCs.
Dos trinta tablets efetivamente colocados à venda em 2010, apenas nove eram produzidos por grandes marcas globais. A disputa acirrada vai impactar também os desenvolvedores de chips e de sistemas operacionais. Embora o iPad seja o tablet mais vendido hoje no mundo, o sistema Android, da Google – única plataforma a desafiar, no momento, as ambições da Apple – está na maioria (55%) dos aparelhos portáteis interativos.
A batalha corpo a corpo está tendo repercussões até nas lojas virtuais de aplicativos. Segundo as contas da PRTM, a plataforma Android ostentava até fevereiro último a oferta de 230 mil aplicativos, contra 350 mil da Apple Store. Os especialistas agora acreditam que ocorrerá com os tablets o mesmo que aconteceu com os smartphones, ou seja, a Apple tendo que dividir o território com outras três ou quatro marcas.
No mês passado (março), o Android estava em 31% dos smartphones, contra 25% de iPhones, 30% de Blackberries e o restante se dividia entre Nokia, Motorola, LG e outros. “As plataformas Apple e Android serão maioria também nos tablets”, acredita Sílvio Genesini, diretor-presidente do Grupo Estado e coordenador do comitê de estratégias digitais da ANJ. “Se o Galaxy Tab, por exemplo, evoluir para uma tela maior, ele poderá ser um forte concorrente do iPad.”
A Apple é ainda predominante (até o final de 2010 haviam sido vendidos 15 milhões de iPads mundo afora, ou seja, 75% do mercado de tablets), mas as vendas de tablets com plataforma Android estão crescendo mais rapidamente que a Apple mesmo após o lançamento do iPad 2. Os especialistas agora apostam que o mercado de tablets em breve estará mais fracionado, reduzindo o poder de fogo da Apple em termos de hardware, software e e-commerce.
No médio e no longo prazo essa expectativa (factível) é vista como “positiva para o setor jornal”. O sistema de vendas fechado tornou a Apple dona do campo, da bola e do jogo, e jornais do mundo inteiro estão insatisfeitos com o que chamam de “interferência excessiva” da empresa encabeçada por Steve Jobs (licenciado para tratamento médico). Os protestos giram em torno das políticas da Apple, que controla os preços, cobra 30% de comissão e impede que os jornais gerenciem as informações sobre seus assinantes.
2. Jornais protestam contra os 30% retidos pela App Store e iTunes
O entusiasmo inicial dos publishers em relação aos tablets se baseava em parte na hipótese de que esses dispositivos digitais de leitura e entretenimento seriam uma forma de os jornais enfrentarem a ameaça de gigantes como Google, Microsoft e empresas de telecom. No entanto, a Apple, primeira a oferecer um dispositivo de leitura multimídia consistente, adotou uma série de exigências que tem incomodado os executivos de jornais.
“Até o momento, a Apple se colocou ao lado desses gigantes, assumindo uma postura muito semelhante à deles. Do ponto de vista dos desenvolvedores de conteúdo, principalmente os publishers, que arcam com custos elevados para garantir a qualidade das suas publicações e para manter seu papel social, o relacionamento está longe de ser bom para os dois lados. Há muita negociação a ser feita e pouca flexibilidade do lado de lá”, observa Guilherme Vieira, gerente de plataformas digitais da “Gazeta do Povo”.
Além de ditar os preços de venda avulsa e de assinaturas, a Apple leva 30% de tudo o que é comercializado em sua loja virtual. Estas e outras imposições despertaram furor nos jornais europeus, principalmente. As primeiras pressões surtiram algum efeito. Em fevereiro foi anunciada a permissão da venda de aplicativos nos sites dos próprios jornais, desde que comercializados pelo mesmo preço também na App Store. A regra dos 30%, porém, continua.
As lojas virtuais dos tablets com plataforma Android cobram comissão de 10%, bem menos que a Apple. “Mesmo assim, é caro, e não se justifica”, enfatiza Sílvio Genesini, coordenador do comitê de estratégias digitais da ANJ. A Apple também não abre aos jornais o acesso às informações dos usuários e assinantes. Ao comprar na loja Apple, uma janela pergunta ao leitor se ele/ela permite o acesso a seus dados pessoais, comprometendo as equações de marketing das empresas jornalísticas.
A receita proveniente da venda de aplicativos em larga escala é fundamental para a Apple, e não é por acaso que a empresa se tornou a maior loja de músicas do planeta. “Era esperado que a Apple fosse cobrar um preço pelo uso de um grande ativo seu: a base de dados de sua loja virtual”, lembra Ana Lucia Busch, diretora-executiva de novas mídias da “Folha”. “O que precisa ser discutido é a autonomia das empresas jornalísticas na administração de seus próprios clientes e nas decisões que dizem respeito unicamente a seu negócio.”
“Os sistemas iTunes e Apple Store são as molas mestras de uma estratégia que integra não só o iPad, mas também PCs tradicionais. Essa estratégia estava bem clara desde o começo. Era um movimento coerente em relação ao ecossistema fechado que a Apple montou. O fato de a plataforma do Google cobrar taxas mais baixas não altera o quadro de concentração excessiva”, observa Luiz Dutra, diretor de tecnologia da RAC.
Para Marcelo Rech, diretor de novos negócios do Grupo RBS, a Apple está “falando grosso” porque ainda não tem concorrente à altura. “No mercado de smartphones, onde a competição é maior, isso já não ocorre. De qualquer forma, acredito que o domínio absoluto da Apple no mercado de tablets é insustentável no longo prazo.” Rech considera essencial a liberdade dos jornais de vender edições especiais e assinaturas diretamente ao seu público.
“A Apple está desconsiderando os modelos de assinaturas que os jornais já utilizam há tempos e que são historicamente eficazes. A empresa de Jobs não tem sido uma boa parceira das principais empresas jornalísticas do mundo. A cobrança de 30% sobre as vendas, além de elevada (a Apple não faz esforço algum), simplifica de maneira negativa o relacionamento detalhado que mantemos com nossos usuários e assinantes”, Rech continua.
Luiz Dutra acredita que os tablets que concorrerão seriamente com o iPad são promissores, e talvez seja mais fácil comercializar conteúdos neles, até para que eles precisam se diferenciar da Apple: “Dificilmente os concorrentes vão viabilizar ecossistemas fechados como o do iTunes. Essa é uma oportunidade que deverá ser explorada pelos produtores de conteúdo para retomar o controle do acesso ao usuário final. O comitê de estratégia digital da ANJ tem estudado com afinco esse cenário, a fim de encontrar soluções”.
“Os produtos concorrentes que tive a oportunidade de conhecer e experimentar são muito promissores, sim. Por outro lado, não carregam a marca e fama da Apple”, adverte Carla Esteves, gerente geral de novos negócios da Infoglobo. “Ao impor um custo adicional excessivo na cadeia de valor da produção de conteúdo, a Apple restringe a utilidade do próprio produto digital”, adverte Luiz Dutra.
3. Base de usuários no Brasil ainda é pequena, mas promissora
Além da diversificação de criadores de hardware (tablets), software (sistemas operacionais) e lojas digitais – fatores que poderiam forçar a Apple a se abrir mais –, há o problema da expansão da base de usuários. “Isso é fundamental”, afirma Marcelo Rech, do Grupo RBS. “Quando atingirmos a marca de um milhão de usuários de tablets, creio que teremos uma razoável massa crítica sobre como operar comercialmente nesses novos dispositivos.”
O iPhone levou quatro anos para atingir a marca de 1 milhão de aparelhos no Brasil. Quanto ao iPad, lançado oficialmente no país no final de novembro, estima-se que existam 100 mil usuários (incluindo os aparelhos adquiridos no exterior). Ao todo, segundo dados da consultoria IDC, o Brasil possui mais de 200 mil tablets, e existe a expectativa de que em pouco tempo eles ultrapassem a marca de 1 milhão.
“O fator fundamental em questão continua sendo escala e consumo”, diz Axeu Beluca, gerente de marketing da “Gazeta do Povo”. A escala depende do preço e vice-versa. “De qualquer forma, os tablets vieram para ficar”, afirma Mario Blanco, gerente de produtos da Positivo Informática, “pois atendem cada vez mais à necessidade de mobilidade e de conectividade das pessoas”.
A Positivo lançou no ano passado o leitor eletrônico (e-reader) Positivo Alfa, sucedido pelo Alfa Wi-Fi, que agora permite o download direto de livros digitais sem necessidade de interface com um computador. O Alfa foi o primeiro leitor digital brasileiro de livros a empregar tecnologia touchscreen. “Receptivos às novidades tecnológicas, os brasileiros estão começando a descobrir as vantagens da leitura digital.”
A Positivo pretende entrar no mercado de tablets, mas seu novo produto ainda não tem previsão de lançamento: “Estamos pesquisando as especificações e um bom sistema operacional para que o nosso produto atenda perfeitamente às necessidades do consumidor brasileiro”. A presidente Dilma Rousseff determinou que o Ministério das Comunicações coordene a partir de agora as ações de inclusão digital, incluindo “a massificação da banda larga” e o incentivo à produção nacional de tablets a preços baixos.
Como mídia ou como negócio, a receptividade dos dispositivos portáteis de leitura e entretenimento se insinua de diversas formas. “O aplicativo da ‘Folha’, por exemplo, já foi ‘baixado’ mais de 80 mil vezes. Isso nos dá uma noção da escala e do potencial que temos. Se compararmos com a circulação média dos jornais no Brasil, começamos a trabalhar com um universo bastante relevante”, acredita Ana Lucia Busch, diretora-executiva de novas mídias da “Folha”.
A maioria dos jornais brasileiros de médio e grande porte lançou aplicativo gratuito no iPad, como degustação ou em caráter experimental. Uma vez aberto e gratuito, seria difícil passar a cobrar? “Se o conteúdo publicado em tablet for isolado, sem integração com outros ambientes, sim, será difícil fechá-lo depois. Por outro lado, se o tablet for apenas parte de algo mais amplo, integrado a várias plataformas, a liberação do acesso pode viabilizar novos produtos”, analisa Luiz Dutra, diretor de tecnologia da RAC.
O fato é que as tentativas de definir cobranças por acesso (“paywalls”) têm sido uma resposta à constatação de que o modelo de financiamento exclusivo por propaganda, com a cessão gratuita do conteúdo, causa um desequilíbrio nas contas dos jornais, acredita Dutra: “Para fechar o acesso é preciso ter conteúdo relevante a ponto de o usuário aceitar pagar por ele. Não há um modelo pronto e acabado que resolva essa equação de maneira trivial”.
4. O tablet comporta jornais “geneticamente modificados”?
Os tablets como um todo (não apenas o iPad) tendem a ser um “jornal modificado” ou uma “nova mídia”? Alternativa importante no “mix” de produtos das empresas jornalísticas ou apenas mais uma plataforma entre tantas? “Muitos aplicativos no início serão ‘jornais modificados’. Mas poderão assumir características de nova mídia à medida que forem integrados à rotina das pessoas. Em relação ao ‘mix’ de negócios, os tablets talvez assumam um papel importante”, aposta Axeu Beluca, gerente de marketing da “Gazeta do Povo”.
Rafael Silveira, diretor de desenvolvimento de produto e inovação da Rede Gazeta, distingue dois tipos de aproveitamento: “Os grandes jornais irão tirar proveito de uma série de recursos que antes só eram possíveis na internet e, mesmo assim, com limitações de manuseio (com mouse e teclado). Já os jornais locais poderão ganhar em escala e competir com o mundo! Os tablets quebram ainda mais as barreiras de acesso ao conteúdo”.
Ana Lucia Busch recusa a ideia “de jornal como uma mídia estanque”, preferindo pensar em termos de “geração de conteúdo”: “Qualquer nova plataforma exige uma forma confortável de distribuição e leitura. Simplesmente transplantar os formatos do papel para as telas, de forma automática, põe em xeque a inteligência do leitor, que espera da ‘Folha’ a melhor edição possível”.
Marcelo Rech encara os tablets como “plataforma nova que se vale simultaneamente do melhor do impresso e da web”, com maior conforto e de leitura e linguagem multimídia: “Operando num universo mais fechado de acesso, o iPad, por exemplo, propicia a interação com matérias aprofundadas. As características mais marcantes do iPad são o relaxamento e a imersão, e não tanto o consumo rápido de pílulas de informação. Isso, claro, nos beneficia”.
O que define “a nova mídia”, na visão de Luiz Dutra, da RAC, não é o tablet em si, mas a digitalização completa da produção e da distribuição de conteúdos. “O tablet, na verdade, é apenas mais uma tela, um dispositivo para entrega de conteúdo e ponto de interação, como os smartphones e a televisão também estão se tornando. O tablet, por si só, não constitui nenhuma revolução”.
Quanto às iniciativas (exclusivas ou não) para iPads, o que deverá prevalecer são os valores clássicos do jornalismo, observa Ana Lucia Busch, do Grupo Folha: “Um jornal cheio de possibilidades técnicas, mas incapaz de dar um furo ou de produzir jornalismo crítico, não tem chance de sobrevivência em um ambiente tão competitivo do ponto de vista da oferta de noticiário”.
5. Experiências marcantes com ou sem receita direta
No atual universo brasileiro de 100 mil iPads, o jornal que atingir 3 mil assinantes já pode se considerar “no lucro”, segundo Sílvio Genesini, vice-presidente do Grupo Estado. “Se tivermos 5 mil assinantes, magnífico”, diz, referindo-se ao próprio “Estadão”. Para Sílvio, o investimento se paga num intervalo de seis meses a um ano. “Em dois anos atingimos 15 mil assinaturas do nosso jornal digital [para uso em PCs]”, compara, otimista.
Até o fechamento desta edição o “Estadão” estava aguardando a aprovação da Apple para lançar um aplicativo pago projetado exclusivamente para o ambiente do iPad. Essa versão paga, segundo Genesini, é um pouco diferente da anterior, que era gratuita. “Será como que o terceiro clichê das edições em papel, depois da nacional e da local.” O design é da empresa espanhola Cases.
Sílvio calcula em R$ 200 mil o investimento necessário para o projeto inicial de lançamento de um app. “Mas esse custo pode ser menor, dependendo da sofisticação do projeto, que se resolve com quatro ou cinco profissionais. Na verdade, o que nós e a maioria dos jornais brasileiros estamos fazendo, por enquanto, é comprar um lugar na fila, com vistas ao futuro.”
Para Carla Esteves, da Infoglobo, tudo vai depender do produto e do público-alvo: “No fim das contas prevalece a velha equação: investimento, receita e margem”. Rafael Silveira, da Rede Gazeta, que, conscientemente, optou por não lançar agora um aplicativo no iPad, sugere o investimento em nichos.
“Uma publicação em iPad para a classe médica, por exemplo, talvez possa se justificar mais rápido que num jornal local e popular de um estado não muito populoso, como o Espírito Santo, por exemplo. A viabilidade estará nesse primeiro momento atrelada ao risco da aceitação do mercado, bem como seu tamanho”, analisa Rafael.
Os custos de manutenção de um aplicativo para iPad ainda são obscuros, porém. Como não se sabe ao certo como o mercado irá se comportar, não há como fazer estimativas, por enquanto. O que se sabe com certeza é que os tablets são o suporte que hoje melhor reproduzem a experiência com o papel, tanto no plano editorial quanto no do modelo de negócio.
As fontes de receita tendem a ser as mesmas do impresso: assinatura (por período e talvez por tema), venda avulsa e publicidade. Além disso, do ponto de vista dos jornais, o processo comercial num tablet (mais especificamente no iPad), é claro e palpável, diferentemente dos smartphones. “Incentivamos os jornais a começar logo a cobrar”, enfatiza Genesini.
Guilherme Vieira, da “Gazeta do Povo”, vislumbra adequações ao meio: “O conteúdo deve ser consumido através de uma ótima experiência, e, para isso, ele deve ser pensado e produzido para o tipo de embalagem ou dispositivo no qual será entregue. Este nos parece o melhor caminho”.
Por esse raciocínio, o conteúdo entregue num iPad reuniria recursos do mundo digital, mas mantém a mesma disposição das reportagens do impresso. “Na internet, todas as notícias acabam tendo peso idêntico. No iPad, a leitura se aproxima da versão impressa, pois segue a mesma lógica de edição”, observa Sandra Gonçalves, diretora de redação da “Gazeta do Povo”. “Nosso aplicativo foi desenvolvido exclusivamente para o iPad, mantendo o DNA do impresso”, complementa Marcos Tavares, editor-executivo de imagem da “Gazeta”.
6. “The Daily”
O “The Daily”, da News Corporation, marco zero em termos de jornal nascido exclusivamente para plataforma Apple, é uma iniciativa ousada. “É bonito e fácil de explorar. Já o sistema de carrossel, embora interessante, me parece confuso, do ponto de vista editorial”, diz Sílvio Genesini, coordenador do comitê de estratégias digitais da ANJ.
Nas primeiras semanas, a seleção dos conteúdos do “The Daily” parecia mais inclinada a apelos populares (esportes e variedades, por exemplo) e menos focada no chamado “público profissional”. Experiente na lida com tablóides ágeis e sensacionalistas, a News Corp é dona também do “The Wall Street Journal”, tradicional e sisudo.
A assinatura do “The Daily” na App Store custa US$ 0,99 por semana. “Esse valor é muito mais barato do que eu esperava”, surpreende-se Genesini, “e foi definido assim talvez por influência da Apple, que adora esse negócio de vírgula noventa e nove”. Murdoch quer atingir rapidamente 100 mil assinantes num universo de mais de 5 milhões de iPads só nos Estados Unidos.