“Honra Teu Pai”, de Gay Talese, evidenciou a
habilidade pactual do mestre do New Journalism
Sergio Vilas-Boas
“Rascunho“, junho/2011
Seu estilo elegante, clássico, finíssimo, não se confunde; seus transparentes métodos de pesquisa e entrevista continuam fazendo escola; suas temáticas certeiras englobam personagens com RGs e endereços facilmente alcançáveis – todos gravitando fora da imaginação, pois estão iluminados pelo mesmo amanhecer que funda o cotidiano de qualquer mortal. Ele busca a subjetividade do real com elevada força, oxigenando o espectro artístico que até o jornalismo possui.
Se o assunto é “não ficção” de qualidade, Gay Talese é sempre tomado como exemplo por jovens e veteranos da imprensa, que o endeusam. O endeusamento, no mundo de hoje, é uma forma ansiada de conforto, e talvez por isso paire uma nuvem de unanimidade sobre a cabeça deste gentleman habilidoso. Nos meios acadêmicos sua validade ainda se situa nos extremos: os departamentos de Letras o ignoram e os de Comunicação o superestimam.
Seria infalível o último mestre vivo do Jornalismo Literário? Claro que não. Ele também pode ser lido como um conservador a serviço do mercado editorial norte-americano, no qual tamanho é documento. Mr. Talese não vacila entre a abundância e a superabundância. Oferece sempre mais do que os leitores exigentes precisam. O excesso é uma de suas marcas registradas ou uma forma de rigor?
“O Reino e o Poder” (1969) e “A Mulher do Próximo” (1981), relançados pela Companhia das Letras, e “Vida de Escritor” (2006), incluído na coleção Jornalismo Literário, comprovam a mentalidade do autor da antológica coletânea “Fama & Anonimato”: a fluência está no senso de detalhe, tanto quanto no volume de insumos. “Honra Teu Pai” (1971), que acaba de ser incluído na mesma coleção, é outro de seus clássicos portentosos.
Antes publicado aqui com o título de “Honrados Mafiosos”, “Honra Teu Pai” é uma imersão profunda na trajetória do mafioso Bill Bonanno, filho de Joseph (Joe Bananas) Bonanno, imigrante de Castellammare del Golfo, oeste da Sicília. O subtítulo (“o primeiro livro de não ficção a penetrar na vida secreta da máfia”) não é enganoso. Para realizar o livro, foi quebrada a omertà, código de silêncio dos criminosos de descendência italiana.
Mas não há, apesar disso, nenhum furo de reportagem, stricto sensu. O que chama a atenção é o modo como Talese capta a aparente contradição entre o terrorismo e a obviedade que marcavam o cotidiano de Bill – um criminoso, digamos, “pós-moderno”, que talvez não houvesse ingressado naquele submundo se a hereditariedade não fizesse parte do dogma da Máfia, na época, ou da família Bonnano, em especial.
Imersão profunda
Se você (tanto quanto eu) não suporta mais histórias de mafiosos de descendência italiana, paciência. Considere que a ficção assumidamente baseada em fatos exagera o real para torná-lo consumível. Eis o ponto, então: os refinados designs narrativos do filho do alfaiate de Ocean City, Nova Jersey, nunca foram maculados por arranhões espetaculosos. O Bill de Talese é violento e charmoso, egoísta e meditativo, impulsivo e equilibrado, enfim, humano.
Diferentemente de Tom Wolfe – outro expoente do New Journalism –, espalhafatoso e onomatopéico, Talese é sóbrio e compreensivo. Quem pensa que compreender é o mesmo que concordar está evidentemente equivocado. A compreensão pressupõe o altruísmo de colocar-se disponível, de deixar-se levar pelos movimentos que ocorrem fora da concha do umbigo, onde impera uma terrível predisposição ao estereótipo.
A concordância é admissível, mas não obrigatória, e jamais estaria livre do rigoroso exame (auto)crítico do autor. Uma das qualidades mais louváveis, aliás – e raramente mencionada –, de Talese é a habilidade pactual. Tolo quem supõe que numa narrativa de não ficção o autor faz somente o que quer, como os ficcionistas de gabinete. Não. Sempre há pactos, acordos, negociações etc.
Fazer Bill Bonnano se abrir foi uma tarefa árdua, impossível de se resolver apenas pelo fato de Talese ser, na época, uma figura eminentemente pública, um jornalista de sucesso, o autor que se tornara best-seller com uma obra extraordinária sobre a saga das famílias Ochs e Sulzberger, descendentes de judeus alemães publishers do “The New York Times”, a principal dinastia do jornalismo norte-americano.
Para “penetrar”, como diz o verbo do subtítulo, você tem de ser aceito. Como ser aceito num mundo que não é exatamente o seu? Cada caso é um caso. Cada caso implica uma maleabilidade acima da média por parte do autor. Talese viu pela primeira vez um membro da família Bonnano no dia 7 de janeiro de 1965, quando, na qualidade de repórter do “The New York Times”, cobria a prisão de Bill, então com 32 anos, no momento em que ele ascendia na hierarquia da organização criada por seu pai, Joe (Banana) Bonnano.
O misterioso desaparecimento de Joe, seis semanas antes, levara as autoridades a pressionar Bill para que ele desse alguma informação sobre o paradeiro do pai. Perguntava-se se o velho Joe teria encenado seu próprio seqüestro a fim de se esquivar das autoridades federais que investigavam um suposto complô, arquitetado por Joe, para assassinar três chefes rivais; ou se o velho siciliano já teria sido morto pelos que pretendia eliminar.
E, como Bill Bonnano se negasse a cooperar com o FBI, foi intimado a comparecer perante um grande júri federal em Manhattan, “e foi ali que o vi pela primeira vez”. Foi quando Talese abandonou por um momento a condição de repórter do “Times” e, ciente de que sua carreira seria mesmo a de escritor de livros, se aproximou de Bill para lhe dizer que gostaria de discutir a possibilidade de produzir um livro sobre a juventude do mafioso. O advogado de Bill, Albert Krieger, protegeu seu cliente o quanto pôde.
“Por sua expressão, porém, percebi que ele [Bill] tinha reagido bem. Talvez a ideia lhe tivesse interessado. (…) Depois disso, liguei várias vezes para o escritório do sr. Krieger em Manhattan, tentando, sem êxito ou incentivo, obter um encontro pessoal. Mais adiante naquele inverno, entretanto, depois de haver escrito duas cartas a Bill Bonnano, endereçadas ao escritório de seu advogado, e de ter deixado dois recados por telefone, recebi um aviso de que o sr. Bonnano e seu advogado se encontrariam comigo para jantar, na semana seguinte, numa churrascaria na Segunda Avenida, perto do edifício das Nações Unidas.”
Durante o jantar, Talese conta no pósfacio, Bill se manteve neutro quanto à possibilidade de vir a ser tema de um livro, mas se deram “extremamente bem”. “Ele parecia ter prazer em relembrar detalhes de sua infância, de seus tempos de estudante no Arizona, da vida dupla que levara como universitário, acompanhando colegas bonitas em festas nos fins de semana e depois indo de carro, sozinho, ao aeroporto de Tucson para receber um dos homens de seu pai que chegara da Costa Leste. Sem sombra de dúvida, até então ele jamais falara sobre essas coisas com pessoa alguma de fora da organização, tão solitária e recôndita tinha sido sua vida pessoal. Ali no restaurante tive a impressão de que tanto ele como eu estávamos ouvindo sua história pela primeira vez.”
Talese convidou Bill e sua mulher, Rosalie, para jantar em sua casa. Bill prometeu que iria, e foi mesmo. Depois disso, às vezes com suas respectivas mulheres e filhos, encontraram-se em várias ocasiões, “firmando aos poucos o relacionamento e a confiança que eram essenciais para o livro que eu esperava escrever, um livro que transmitisse a complexidade de ser um Bonnano, a atmosfera especial que reinava na casa, o efeito do passado sobre o presente”.
Emboscadas
O episódio que os aproximou decisivamente, porém, ocorreu cerca de um ano depois de se conhecerem. Bill apareceu de repente na casa de Talese. Estava barbado e ofegante, usando uma camisa preta sem gravata. Pediu desculpas pela surpresa e começou a explicar, “com uma calma extraordinária”, que pistoleiros tinham tentado matá-lo. Três dias antes Bill havia caído numa emboscada num sábado na rua Troutman, no Brooklyn, armada por uma facção rival.
Toda a vizinhança ouvira os muitos tiros, mas os jornais e rádios de Nova York não deram a mínima para o incidente. Bill ficou tão surpreso quanto desapontado, concluindo que a imprensa era totalmente dependente de porta-vozes do governo para obter suas notícias. Como esses porta-vozes estavam de folga, nada foi apurado ou transmitido. Outra hipótese que Bill aventou foi a de que a polícia se calara de propósito.
“Eu já não trabalhava mais no ‘Times’, mas me propus a falar com um editor de quem era amigo, e foi com essa dica que a história veio à luz. Além disso, o episódio aproximou-me ainda mais de Bonnano.” A partir de então, Bill enviou a sua irmã, Catherine, que morava em São Francisco, uma carta autorizando-a a tratar com Talese aspectos pessoais da vida do irmão. Informante valiosa, Catherine abriu as primeiras portas.
Extraordinário o fato de que Talese, ele próprio filho de um altivo alfaiate que emigrou da Itália para os Estados Unidos na década de 1920, já pesquisava e dialogava com os potenciais personagens de “Honra Teu Pai” enquanto redigia “O Reino e o Poder”, sobre a saga dos publishers do “Times”. Aquela intensa atividade de campo e de gabinete sinalizava o dinamismo diferenciado da não ficção de longo alcance que Talese consolidaria no formato livro.
Passados quarenta anos da primeira edição em inglês de “Honra Teu Pai”, sua leitura talvez seja influenciada por “O Poderoso Chefão” (1972), filme de Francis Ford Coppola vencedor de nove Oscars e baseado no romance homônimo de Mario Puzo, e pela série de TV “Família Soprano”, exibida entre 1999 e 2007 nos Estados Unidos. Em comparação com a história positivamente “monótona” narrada por Talese, essas produções agora podem parecer meros reality shows.
O bom narrador do real une duas qualidades aparentemente distantes uma da outra. De um lado, precisa de inteligência racional para estudar, levantar informações e interpretações, compreender com profundidade e analisar o assunto que tem pela frente. De outro, precisa de inteligência emocional (incluindo a intuição) para se deixar tocar sensorialmente pela ressonância interior causada pelas características subjacentes, pelos cenários por onde circula e pelas pessoas com as quais lida tête-à-tête.
A expressão não ficção às vezes soa mal, talvez pela negativa renegadora. Mas ficção não é sinônimo nem de mentira nem de verdade. Para autores como Talese, o importante é a procura por conteúdos/formas imbricados, expressos de maneira tão fascinante que possam ser lidos como (apesar de não serem) romances. O conjunto da obra de Talese (em livros e na revista “Esquire”, principalmente) indica que tal complexa combinação pode ser atingida por quem é, considera-se e assume-se, em sentido amplo, repórter.
Se o Jornalismo Literário tivesse uma finalidade única, ela seria a seguinte: aprofundar assuntos e transmiti-los com arte, sem moralismos. Nesse sentido, “Honra Teu Pai” (título sugerido por Rosalie, mulher de Bill) é, no fundo, um drama doméstico que enfatiza o indivíduo mais que o crime, a partícula mais que a matéria, a confiança mais que a traição, a instituição família mais que a Família Bonnano. Em seu núcleo há uma pergunta-chave: o que o futuro reserva ao filho nascido no seio de uma organização criminosa?
Talese não apenas responde à questão como honra o seu maior fundamento como jornalista-autor: persistir em penetrar nas camadas mais profundas do entendimento, evitando por todos os meios a conclusão apressada e a suposição fácil. Foram sete anos de trabalho, afinal. E, como bônus, você ainda será levado a conhecer o processo histórico das máfias de Nova York (dos irlandeses do início do século XX aos latinos de hoje, passando, claro, pelos italianos, centro do centro).
“Honra Teu Pai” é um exemplo de transparência no trato com personagens, fatos e interpretações; e volta à luz no exato momento em que mesma editora relança também “O Jornalista e o Assassino”, de Janet Malcolm, obra marcante do ponto de vista da ética jornalística, e que aborda o relacionamento “esquizofrênico” entre um narrador da realidade (Joe McGuinniss) e seu protagonista, um homem que matou a própria mulher e suas duas filhas (Jeffrey MacDonald).
TRECHO (pp.159-160)
Cerca de 75% da receita do crime provinha de cidadãos que apostavam com corretores em corridas de cavalos e outros eventos esportivos, ou que faziam uma fezinha em loterias clandestinas. Embora um típico apostador da loteria pudesse ser uma dona de casa do Harlem que, vivendo do seguro-desemprego, depositava 25 centavos, toda manhã, com um apontador da vizinhança, na esperança de bater a vantagem de mil para um da banca e acertar no número diário, que por acordo prévio poderia ser formado pelos três últimos algarismos do total apostado no hipódromo local naquele dia, e embora o freguês típico do bookmaker de corridas pudesse ser um mecânico de automóveis ou um carregador que apostava dois dólares num cavalo todos os dias, há nos Estados Unidos um número suficiente desses jogadores – milhões de pessoas para quem uma pequena aposta constitui um tônico diário e que não podem dar-se ao luxo de comparecer pessoalmente a um hipódromo – para sustentar a fabulosa indústria do jogo ilegal, uma indústria que prosperava havia décadas, apesar dos agentes da lei e do desejo de legisladores puritanos.