Se não existissem a solidão, a dificuldade do amor e a morte, a dúvida e o desespero, a literatura não existiria
Sergio Vilas-Boas
O passado nunca foi melhor que o meu presente. O meu presente é o melhor presente, e nenhuma nostalgia me orienta. Mas aprecio encarar o que se passou comigo, ou com outros na mesma situação.
Recordo-me com prazer das narrativas pessoais de gigantes como George Orwell em Homenagem à Catalunha; Gabriel García Márquez em Viver para contar; Jorge Luis Borges em Um ensaio autobiográfico; Graciliano Ramos em Memórias do cárcere; Ryszard Kapuscinski em Ébano.
Mas também textos mais focais como Da mão para a boca e A invenção da solidão, de Paul Auster; Juventude, de J.M. Coetzee; O filho eterno, de Cristovão Tezza; O ano do pensamento mágico, de Joan Didion; Patrimônio, de Philip Roth; e Antes do fim, de Ernesto Sabato.
Sabato, naquele livro, pergunta-se: “A epifanias de que enigmáticos Deuses meu destino me conduzia? Por que, aos trinta anos, quando a ciência me assegurava um futuro tranqüilo e respeitável, abandonei tudo em troca de um ermo escuro e frio? Não sei”.
Se não existissem a solidão, a dificuldade do amor e a morte, a dúvida e o desespero, a literatura não existiria. A formação ideal para um escritor está em sua própria vida. Mas o autobiografismo declarado possui outras motivações: a vaidade, o anseio de produzir algo estético, a vontade de alcançar uma comunhão com outros humanos. No caso de escritores, há ainda a compulsão de conferir um sentido à carreira literária ou à obra.
Cabe perguntar, porém, se os dramas dos (sobre) escritores têm interesse geral ou se atraem somente uma minoria de subescritores interessados nos percalços e glórias de seus pares famosos. Talvez a única maneira de exorcizarmos nossos demônios seja pela escrita, realimentando, assim, a obscuridade. A teimosia se alimenta da teimosia, como a violência se alimenta de violência.
Escritores são frágeis construtores de fragilidades; antes de haver a obra, seus projetos de obras, se pré-analisados com uma lupa, são ocos como um balão. Se você, enquanto escreve, fica tentando imaginar no que resultará o seu labor, então o melhor é você pular fora do barco. Apenas criaturas obsessivas e com egos superestimados têm chances de sobreviver ao naufrágio.
Traído pelo desejo de tentar entender por que aquela coisa não-literária me pegou dez anos atrás, volto a pesquisá-la. É raro encontrar boa literatura vivencial, não técnica, sobre ela. Compro Perto das trevas, de William Styron, relato também autobiográfico no qual o autor de A escolha do Sofia teria descrito (assim supus) seu “mergulho involuntário no abismo”.
O exemplar usado chega até mim pelo correio. Irrito-me ao ver anotações feitas a caneta. Penso em devolvê-lo ao sebo virtual com uma carta desaforada em anexo. Mas mudo de idéia ao ver comentários às margens feitos por um leitor que experimentou o mesmo mal; alguém cujo nome ou pseudônimo talvez seja Jonas Queiroz: jovem, culto, bem-humorado e morador do Pari, ao que parece.
“Eu tinha chegado àquela fase na qual desaparece toda e qualquer esperança, bem como toda a idéia de futuro. Meu cérebro escravo dos hormônios estranhos era menos um órgão de pensamento do que um instrumento que registrava, minuto a minuto, os vários graus do próprio sofrimento.” Ao que o leitor do Pari anotou: *Minha tristeza, eu não a conseguiria escondê-la, mesmo se tentasse.
Jonas devorou Perto das trevas. Estudou-o a fundo. Às menções de Styron a famosos que afundaram em dúvidas quanto às naturezas de seus próprios atos (Albert Camus, Primo Levi, Romain Gary, Vincent Van Gogh, Virginia Woolf, Cesare Pavese, Sylvia Plath, Jack London, Ernest Hemingway, Mark Rothko, Paul Celan, Vladimir Maiakovski, Ingmar Bergman…), Jonas acrescentou às margens Pedro Nava, Ana Cristina César, Julio Ribeiro, Kurt Kobain. Seus grifos não comentados também são certeiros: sensação de odiar a si mesmo; ausência de auto-estima; confusão, falta de foco mental e lapsos de memória; perda do amor-próprio; medo terrível de ser abandonado ou de ficar sozinho em casa; letargia etc. etc.
Este exemplar de Perto das trevas digerido por Jonas alterou os meus planos. Styron não vai fundo nas causas, embora fale de seu padecimento com franqueza e honestidade. Fornece poucos detalhes sobre suas próprias vivências, embora condense inúmeras descrições gerais. Mas, afinal, como estava a vida de Styron no momento em que a coisa o pegou? Ele não diz. E foi precisamente esta “lacuna” que me encheu de motivação. Hoje sei muito bem como estava a minha vida quando fui pego pela Depressão: melhor ela não podia estar.