A resposta à pergunta “o que é humanismo?” dependerá de qual tipo de humanismo estivermos falando
Sergio Vilas-Boas
Antonio Candido escreveu em seu primeiro artigo (7/1/1943) como crítico da “Folha da Manhã”: “(…) não disponho de nenhuma faculdade extraordinária como levantar as tampas dos crânios ou farejar o princípio dos princípios. (…) Se nem sempre é possível dizer tudo aquilo que se pensa, é sempre possível dizer apenas aquilo que se pensa”. Resolvi então dizer apenas aquilo que me ocorre (agora) sobre a palavra humanismo. O que significa, na verdade? A palavra humanismo se confunde com a filosofia sobre a natureza do ser humano – sua essência, sua índole, sua condição.
O tipo de resposta que obteremos sobre “o que é humanismo” dependerá de qual tipo de humanismo estivermos falando. A palavra humanismo tem vários significados. Autores e palestrantes normalmente não esclarecem qual ou quais deles pretendem abordar, causando confusões e generalizações. Os vários humanismos podem ser facilmente separados e definidos por adjetivos apropriados: humanismo renascentista, humanismo literário, humanismo cristão, humanismo moderno, humanismo existencialista e outros.
A maneira como nos vemos e somos vistos é a base dos estudos sobre esse tema. Aristóteles (384-322 a.C.) foi um dos primeiros a dar extraordinária contribuição à compreensão do ser humano ao afirmar a indissolúvel união entre espírito e matéria, alma e corpo. Alma e corpo estão unidos entre si de forma natural. A alma representa algo de divino em nossa existência. Já Santo Agostinho (354-430) e Santo Tomás de Aquino (1225-1274), pensadores do humanismo cristão, reforçaram que o humano é um ser paradoxal, síntese natural de princípios contrários e exigências opostas. Agostinho e Aquino tomaram como pressupostos a inteligência (que nos diferencia dos animais), a possibilidade de amar e a solidariedade.
O humano possui ainda o diferencial de poder reviver o passado mentalmente, e de dar-lhe significados distintos conforme o estado mental. Todas as pessoas vivas, e não apenas as famosas, compõem a memória social e coletiva. Ecléa Bosi nos dá exemplos a partir da matéria descartada pelo jornalismo frugal: “…é do cotidiano que brota a magia”, escreve ela, “a brincadeira que vai transformando uma coisa em outra. (…) o tecido das vidas mais comuns é atravessado por um fio dourado: esse fio é a história”. Implícita está a seguinte idéia: a inclusão é uma atitude humanística, e o comum é apenas aparentemente comum, pois guarda segredos.
O cotidiano da deslumbrante Gisele Bündchen, por exemplo, não é feito só de passarelas, papparazzi, badalações e mimos. Para saber quem Gisele realmente é teríamos de acessar sua intimidade e sua essência; conhecer a mulher ocultada pelo mito e o mito ocultado pela modelo. De qualquer maneira, não é o caso de recusar a matéria de Gisele (seria uma atitude um tanto suspeita) apenas pelo fato de a maioria de nós mortais desconhecer a alma de Gisele.
Costumo dizer, em tom de jocoso, que toda pessoa é o que ela pensa enquanto repousa a cabeça no travesseiro antes de dormir. O resto são projeções, máscaras, arranjos para arrastar as cargas. Oportuno, então, falarmos da Renascença (séculos 15 e 16), período em que a figura humana, especialmente o corpo humano, se tornou o tema preferido da arte. Na Renascença, a dignidade e o valor do ser humano eram o leitmotiv também das especulações filosóficas. Escritores, pintores, escultores e filósofos celebraram o ser humano como um microcosmo, uma miniatura do universo, algo belo e intermediário entre a matéria e o espírito. O humano participa do divino e atinge, através de Deus, a plena perfeição e a felicidade.
Mas pouco a pouco os “egos” (claro, esta palavra não era usada na Renascença) inflaram tanto que as pessoas se convenceram de que eram elas as criadoras de Deus, e não o contrário, como até então se pensava. Os renascentistas não apenas valorizaram o Homem, como o valorizaram em sentido unilateral, até fazê-lo acreditar que era o centro do universo. Deflagrava-se então um processo de auto-elevação extrema que culminaria em uma nova concepção e uma nova atitude em relação, por exemplo, à natureza. Com o desenvolvimento da ciência e da técnica, a visão de mundo nos séculos seguintes seria marcada pela crença de que a natureza existe para ser explorada em nome do progresso.
Os iluministas, oportunamente, se perguntaram: ora, se o mundo é explicável pela ciência e pela técnica, por que nos ocuparmos de uma porção supostamente divina, subjetiva do Homem? A partir desta questão nasceram conceitos como a dialética em Hegel (1770-1831), o materialismo econômico em Marx (1818-1883), a moral em Nietzsche (1844-1900) e existencialismo em Sartre (1905-1980). Para os quatro, um sujeito só poderia ser considerado humanista se fosse ateu.
Chegamos assim aos primórdios de uma era em que a matemática conquistou preponderância sobre a subjetividade. A idéia de que pela objetivação se pode explicar/descrever tudo, problema já superado pelos bons cientistas vivos, ainda encanta muitos freqüentadores de ambientes jornalísticos tradicionais. Uma das conseqüências disso é a veneração do corpo e da matéria mensurável em detrimento da essência humana, que é imaterial. Ao cultuar o corpo hedonisticamente, a mídia, um tanto em desacordo com as ciências de ponta, estabelece hierarquias para quem tem e quem não tem valor, quem vale muito e quem vale pouco, quem vale e quem não vale uma materinha. Neste ponto, qualquer vestígio de uma distorcida herança renascentista não será mera coincidência.
E nós nos perguntamos se pode ser diferente. A resposta é sim. Em todas as mídias? Não saberia ainda, mas em livro, sim, certamente. Ecléa Bosi faz percurso inverso ao da TV aberta. Inclui em vez de excluir; procura brechas para o passado em vez de esquecê-lo. Suas histórias “reais” (vividas ou ouvidas) evidenciam uma busca da essência, não das aparências: um velho que extrai reflexões da infância a partir de uma gravura do início do século 20; um taxista de Santo Amaro que comprou uma ilha; um italiano combatente da Resistência que escapou de Auschwitz inspirado pela leitura de “Pinóquio”; o solteirão que não desistiu de obter autorização judicial para vender sua casa no interior e ir conhecer o mar; a história de João e a festa de São João; da onça que podia ter aparecido; de um natal em Florença, um fado em Lisboa e por aí vai.
“Velhos Amigos” aproveita objetos perdidos e esquecidos tanto quanto sentimentos e impressões pessoais. “As histórias de vida estão povoadas de coisas perdidas que se daria tudo para encontrar: elas sustentam nossa identidade, perdê-las é perder um pedaço da alma (pág. 27)”, escreve Ecléa. “As mensagens impostas pela mídia invadem nosso cotidiano, penetram corações e mentes, extinguindo assim todos os vestígios de uma cultura espontânea e arcaica, a chamada cultura popular (pág. 33).”
Pois bem. A alma são os objetos, que apalpamos, mas também os sentimentos. Os sentimentos são condição sine qua non para a prática do Jornalismo Literário. Antes de racionalizar, precisamos sentir, como fazem os artistas e os cientistas. Ecléa Bosi aproveitou o prodigioso poder de evocação da memória para explorar a diversidade, apostar no encontro (em vez de no telefone ou na internet), percorrer o mundo caminhando (em vez de encerrar-se na falsa segurança de uma bolha blindada e climatizada); ela procura a beleza no jovem e no belo, mas também no feio e no idoso; evita critérios de escolha estritamente econômicos, classistas ou físicos; e, principalmente, demonstra fé nas artes de narrar. “Velhos Amigos” não pode ser considerado jornalístico, obviamente, mas o que se realiza nele é exemplar do ponto de vista humanístico, e inspirador para jornalistas dispostos a enxergar mais longe.
A mesma poética me guiou em “Perfis – e Como Escrevê-los” (Summus, 2003). Nele, tento descobrir o universal embutido nas particularidades de 12 escritores – dez brasileiros e dois estrangeiros. Através deles, lancei luzes sobre dramas humanos do nosso tempo. Procurei entendê-los em vez de estereotipá-los. Os programas de TV enjoativos (mas não só eles – alguns jornais e revistas também) nutrem um interesse doentio pelos famosos. Os não muito conhecidos têm seu lugar desde que estejam em evidência por algum fato muito extraordinário. Já um sujeito desconhecido, por mais revelador, não passa de corpo sem apelo. Exceção, claro, para os grotescos, os pitorescos, os vitimados, os loucos de pedra. As exceções só confirmam a regra patente do jornalismo industrial: o que não se vê, não se sente, e, portanto, não desperta.
É fácil aceitarmos que a realidade não é puramente física. Se fosse, o ser humano simplesmente não existiria. O que nos caracteriza, como bem diz o filósofo Pedro Dalle Nogare, é o transfísico, o que foge a qualquer mensuração matemática. A ciência só pode nos trazer vantagens, desde que reconheça seus limites. Limites de possibilidades e de resultados. Nunca a matemática ou a química, por exemplo, poderão conhecer o ser humano como um todo, exatamente porque o humano é algo mais do que suas visíveis feições.
Ambientes (profissionais, domésticos, públicos) mais arejados já estão mudando de perspectiva: em lugar do individualismo, a consciência planetária. “Surpreendentemente, as maiores descobertas científicas destes últimos séculos, que abalaram as evidências mais comuns dos homens, foram no sentido de mostrar cada vez mais claramente a união do ser humano com o resto do Cosmo (Copérnico e Galilei), com os outros seres inanimados e viventes do planeta Terra (Darwin), com seus semelhantes na sociedade, sobretudo através das relações de produção (Marx), e finalmente a atração irresistível e complementar de uma metade do gênero humano (machos) com a outra metade (fêmeas), por instintos profundos e enraizados na própria personalidade do indivíduo (Freud)”, escreve Pedro Dalle Nogare em “Humanismos e Anti-Humanismos” (ed. Vozes).
Qual o perfil do humanista pós-moderno? Especulando: ele/ela é um defensor dos direitos civis, da democracia participativa, do desenvolvimento econômico sustentável, da paz, da solidariedade, da ética, do meio ambiente, do pluralismo, da diversidade, da igualdade e da espiritualidade (religiosa ou não). O humanista pós-moderno não se opõe às globalizações e revoluções tecnológicas, mas deseja que elas diminuam, em vez de aumentar, o fosse entre ricos e pobres. Enfim, estamos falando de sujeitos inconformados, que sempre existiram e continuarão a existir. Os humanistas, aliás, são os imprescindíveis a que se referia o dramaturgo Bertolt Brecht (1898-1956).
Por último, sugiro dois programas culturais para testar sua capacidade de perceber as grandes questões humanas: entregue-se plenamente às sensações de um passeio de montanha-russa e depois vá assistir ao filme “As Horas” (“The Hours”). Quando deitar a cabeça no travesseiro, à noite, relembre as duas experiências, remonte-as, compare-as. Note a dureza de lidar com o imanipulável, e a medonha incongruência das simulações que criamos para evitar o desconhecido. Outra coisa: se estiver sem sono, comece a ler “Velhos Amigos” também. Nele, a delicadeza é um valor humano tanto quanto o humanismo é um valor sem medidas. (Publicado em 2003. Revisado em novembro de 2010)