Mario Vargas Llosa e Eduardo Galeano expõem, em coletânea
e num clássico, as veias abertas de seus ideais políticos
Sergio Vilas-Boas
“Rascunho“, dezembro/2010
Mesmo se você contextualizar de maneira desapaixonada as várias hipóteses contidas em “As Veias Abertas da América Latina” (L&PM), de Eduardo Galeano, ainda restarão ao final da leitura interpretações provocantes e atuais, apesar de o livro ter sido concluído em 1970, época em que os rótulos esquerda ou direita eram definidores da mentalidade de um indivíduo ou um grupo. Da mesma forma, se você aceitar (sem muletas ideológicas) que Mario Vargas Llosa tem o direito de não ser exatamente o mesmo ao longo de mais de cinqüenta anos de carreira intelectual, certamente irá se deleitar com a defesa que o mais recente ganhador do Nobel de Literatura faz da democracia e da liberdade na coletânea de ensaios políticos “Sabres e Utopias” (Objetiva).
O termo “América Latina”, cunhado por franceses nos tempos de Napoleão III, não expressa unidade. Apesar de algumas semelhanças históricas, há várias américas latinas, na verdade, e algumas regiões ainda enfrentam distúrbios institucionais. Os países andinos – o “pentagonito” formado por Peru, Venezuela, Equador, Bolívia e Colômbia – são o principal foco de instabilidades, hoje, embora o Paraguai não fique atrás. Todos esses países têm sido comandados nos últimos anos por presidentes “neopopulistas”, alguns deles autoritários ou sem nenhum apego às formalidades democráticas. Mesmo em plena era digital, não faltaram neste castigado continente sujeitos capazes de dar golpes de estado até em si mesmos, alterar constituições, fechar congressos, manipular eleições, intervir no judiciário e esbravejar demagogicamente contra o imperialismo.
Distante do dia-a-dia peruano, e talvez por isso, Vargas Llosa se dedicou ativamente a denunciar os desmandos na América Latina como um todo. Os textos de “Sabres e Utopias” – assim como as “Reportagens Políticas” (Record, 2006) de Gabriel García Márquez – sinalizam o ideal de uma América Latina mais democrática e socialmente justa. A primeira denúncia marcante de Vargas Llosa foi contra um de seus ídolos de então: Fidel Castro. O caso envolvia o poeta cubano Heberto Padilla, que, em 1971, foi acusado de atividades subversivas e contrarrevolucionárias após a publicação de seu livro de poemas “Fuera del Juego”. Obrigado a se retratar, Padilla fez uma autocrítica em público.
Vargas Llosa, que conhecia Padilla, descobriu que aquele espetáculo de mea-culpa havia sido orquestrado pelas altas esferas do poder cubano e mobilizou os intelectuais de esquerda com uma contundente carta de repúdio ao tratamento imposto a Padilla e a outros escritores da ilha. “Acreditamos ser nosso dever transmitir-lhe [Fidel] nossa vergonha e nossa ira. O lastimável texto da confissão assinada por Heberto Padilla só pode ter sido obtido mediante o uso de métodos que são a negação da legalidade e da justiça revolucionárias. O conteúdo e a forma dessa confissão, com suas acusações absurdas e afirmações delirantes, fazem lembrar os mais sórdidos momentos da época do stalinismo, com seus julgamentos pré-fabricados e suas caças às bruxas”, escreveu Llosa.
A partir desse episódio a esquerda sectária começou a rotular Llosa de “um convertido à direita” ou algo assim. O antropólogo colombiano Carlos Granés, que assina o prefácio de “Sabres e Utopias”, discorda do rótulo. Apesar de ter revisto suas posições em relação à revolução e à democracia, o “universo mental” do Prêmio Nobel peruano permaneceu o mesmo, afirma Granés. “Não houve essa suposta transformação de Dr. Vargas em Mr.Llosa. (…) Sua escala de valores se manteve e o diagnóstico dos males que atingiam o Peru não se modificou. Continuou considerando que a prioridade, para a América Latina, consistia em adotar o caminho dos países ocidentais e se modernizar.” O que mudou em Vargas Llosa, segundo o pesquisador, foram os métodos para se atingir os objetivos, não os objetivos.
Eterno dilema
Eis o eterno dilema da América Latina: desenvolver-se economicamente e desconcentrar renda. Em função disso, os países do continente tentaram de tudo (inclusive colocar os fins a serviço dos meios), sem atingir plenamente as estabilidades política, econômica e social desejadas, e muito menos as três ao mesmo tempo. O cenário de internacionalização e tecnologias onipresentes do final do século 20 parecia imune a ditaduras nacionalistas, autoritarismos ou revoluções armadas de qualquer tendência. A democracia, melhor sistema de governo na falta de outro melhor, como dissera Winston Churchill, haveria de triunfar também no continente como um todo, mas… Não necessariamente. Como disse Diderot, “desconfiai de quem vem para pôr ordem”.
Democracia deveria ser, acima de tudo, uma convicção, e não somente o desejo de eleições regulares, como Vargas Llosa deixa claro em seus ensaios. Teoricamente, uma democracia se baseia na separação e no mútuo controle dos três poderes, exatamente o que foi suprimido nos países do continente várias vezes ao longo do século 20. No caso do Peru, o absurdo mais recente foi o de Alberto Fujimori, que bateu Vargas Llosa com larga vantagem nas eleições presidenciais peruanas de 1990. O “chino” (pronuncia-se “tino”, em espanhol) se aproveitou do desajuste que havia entre as instituições e a realidade e instaurou uma corrupta ditadura disfarçada em democracia. Esse tipo de desajuste, aliás, é tema clássico por aqui desde os tempos de Simon Bolívar.
A grande questão contemporânea do continente, que destoa um pouco da perspectiva formulada por Eduardo Galeano em “As Veias Abertas…”, é se uma nação é melhor servida por políticos que põem as instituições em primeiro lugar ou por políticos que privilegiam a estabilidade econômica. Mas uma economia de mercado sem instituições políticas e jurídicas fortes não existe verdadeiramente. O sistema peruano do período Fujimori, por exemplo, foi uma prova de que de nada adianta substituir monopólios públicos ineficientes por monopólios privados abusivos. A corrupção no governo do “chino” pelo menos serviu de alerta para o fato de que o neopopulismo com reformas liberalizantes parecem indissociáveis, pelo menos no âmbito andino.
Tanto Galeano quanto Vargas Llosa repudiam severamente os regimes autoritários, que geram atmosferas viciadas e sórdidas, de ceticismo e frustração. Mas divergem noutros tópicos. Enquanto Galeano defende a liberdade como ruptura com a História, Llosa enfatiza que a liberdade só pode ser experimentada numa democracia autêntica. Enquanto Vargas Llosa procura rechaçar qualquer sombra de determinismo ou fatalismo, Galeano não hesita ainda hoje em erguer a mão contra o que chama de novas formas de dominação (substitutas do velho “imperialismo”). “As Veias Abertas…”, que acaba de ganhar uma edição de bolso pela L&PM, com tradução de Sergio Faraco, fecha-se na história econômica e política do continente. “Sabres e Utopias” também. Por outro lado, tanto um quanto o outro tentaram (tentam) compreender o continente contrapondo-o ao Velho Mundo.
Esse modo de abordagem, aliás, é o mesmo que impregnara os grandes escritores do boom literário latino-americano dos anos sessenta e setenta, como Julio Cortázar, Adolpho Bioy Casares, Ernesto Sabato, Jorge Luis Borges, Alejo Carpentier e Gabriel García Márquez, para citar alguns. Na condição de exilados, seus choques culturais tiveram de ser diluídos pela veia ficcional, mais do que pela racionalidade política. Já os autores de gerações posteriores à deles, caso de Galeano e Llosa – mas também de Ariel Dorfman, Ricardo Piglia e Tomás Eloy Martinez –, foram mais fortemente marcados pelo “imperialismo democrático” dos Estados Unidos pós-Segunda Guerra que pelo domínio europeu católico racista. Não é por acaso que uma das obsessões temáticas era exatamente os ditadores.
O realismo mágico (ou fantástico) foi uma expressão literária decorrente também da indecência política de uma região com governantes sempre a meio palmo da deformação moral; e a ambivalência da história oficial dos países ajudou a fomentar um afã revisionista nos autores dessa linha. Com cenário e contexto à mão, a criação de personagens seria baseada em quem? Simples: nas enciclopédias. Elas estão cheias de líderes “deformáveis”, às vezes inumanos, e em muitos casos suas atitudes superam em barbárie as fórmulas ficcionais. Autores como Miguel Angel Asturias (“O Senhor Presidente”), Augusto Roa Bastos (“Eu, o Supremo”) e García Márquez (“O Outono do Patriarca”), por exemplo, exploraram com afinco a temática da onipotência, contribuindo para disseminar certa crença de que a América Latina seria, em si, surrealista.
Vargas Llosa, embora tenha feito parte daquele boom, empreendeu correções de rota. Uma delas foi escapar às mágicas fáceis e fertilizar a verossimilhança. Em “A Festa do Bode” (2000), por exemplo, ele adentrou a mente obscura de Rafael Leonidas Trujillo Molina, um dos mais sanguinários ditadores do Caribe, e que governou a República Dominicana de 1930 a 1961, até ser assassinado por conspiradores não menos cruéis. Aquele livro era uma espécie de resgate temático de “Conversas na Catedral” (1969). Ah, os monstros nunca são desenterrados sem que de repente emerja aqui e ali a fantasmagórica presença real de um caudilho corruptor. Àquela altura, um romance centrado em Trujillo poderia denotar certa esclerose do autor de “A Guerra do Fim do Mundo” (1981). Mas, não. A cultura de subserviência internacional pouco mudou, em proporção global.
A primeira década do século 21 trouxe aos holofotes uma alteração nas prioridades nos governo da Bolívia, com Evo Morales, que nacionalizou os hidrocarbonetos, do Equador (Rafael Correa), da Venezuela (Hugo Chávez) e do Paraguai (Fernando Lugo). O livro de cabeceira destes e de outros governantes é exatamente “As Veias Abertas…”. Galeano, mais romântico e sonhador que Vargas Llosa (este, centrado e sistemático), construiu uma denúncia contundente sobre a nossa formação política, econômica e cultural. (Em 2009, num gesto populista, Hugo Chávez presenteou Barack Obama com um exemplar da obra em espanhol durante uma reunião de cúpula; mas é certo que o presidente americano nunca o lerá.)
Nada como antes
“As Veias Abertas…” despertou em toda uma geração de intelectuais de esquerda uma amarga indignação pelos genocídios cometidos em nome da religião, da liberdade e do progresso, durante o processo que se iniciou com a conquista da América e que, segundo declarações recentes de Galeano, segue seu curso. Não importa a origem do colonizador (se espanhola, portuguesa, holandesa, francesa ou inglesa), nem se houve maior ou menor presença indígena ou negra na população. Para o escritor uruguaio, todas as sociedades aqui foram edificadas para servir aos interesses comerciais da Europa e, posteriormente, dos Estados Unidos, que patrocinaram as sangrentas ditaduras latino-americanas do pós-guerra.
Escrito em 1970, e posteriormente corrigido e aumentado em 1978, o livro marcou época. Era um momento terrível da história latino-americana. Entre a primeira edição e a sua revisão posterior caíram vários governos “populares” eleitos por voto direto. Uma onda feroz de repressão militar submergiu o continente na escuridão. A crueldade dessas ditaduras só é comparável à violência dos conquistadores europeus. Na Argentina e Chile, principalmente, os requintes de brutalidade encabeçados por Videla e Pinochet poriam abaixo tanto as teorias do “progresso pacífico” quanto as clássicas perspectivas comunistas.
A intelectualidade latino-americana, em sua maioria exilada, teve muita dificuldade de processar simultaneamente as mudanças divergentes que ocorriam aqui e no resto do mundo no começo dos anos oitenta. Este, aliás, é um dos motes para a releitura de “As Veias Abertas…”. No âmbito acadêmico, muitas das concepções transmitidas no livro foram rebatidas em termos teóricos. Acusaram Galeano de “determinismo geográfico” por apontar as causas do desenvolvimento desigual das américas (latina e anglo-saxônica); contestaram o suposto “circulacionismo” da abordagem do uruguaio, que não considerou o tráfico de ouro e prata como produtos do trabalho; criticaram ainda o excesso de “revisionismo histórico”, que reduziu as causas do subdesenvolvimento das nações recém-emancipadas a uma causa única: sabotagem do Império Britânico.
Eis algumas hipóteses não acadêmicas formuladas visceralmente por Galeano e cuja validade parecia incontestável em 1970 para as esquerdas: 1. A América Latina só existiu para fornecer as riquezas que a Europa necessitava; 2. A pobreza social foi resultado de um sistema excludente, que privilegiou uma minoria financeiramente capaz de integrar-se aos padrões de consumo de suas respectivas épocas; 3. A opressão de governos centralizadores contra as maiorias pobres provocou genocídios e degradação social; 4. O desenvolvimento dos países do continente está invariavelmente subordinado às tendências ditadas pelas grandes potências.
Diálogo com o tempo
Interessante que Galeano tenha organizado as fontes e os fatos numa ordem não cronológica, fazendo com que passado e presente dialoguem entre si. Ele dividiu o livro em três partes. Na primeira, mostra como os espanhóis e portugueses chegaram àquelas terras virgens no século 15 e se aproveitaram das riquezas. Os primeiros, fixados desde o planalto mexicano até os Andes, tiveram sorte e encontraram ouro e prata nas primeiras andanças. Os lusitanos, ocupando a faixa litorânea do Oceano Atlântico, tiveram de construir um império colonial à base da cana-de-açúcar enquanto não encontravam metais. A essência da exploração nas duas regiões, porém, foi a mesma: trabalho forçado, opressão e enriquecimento de poucos.
A propósito, argumenta que apenas uma pequena parte da riqueza das colônias seguiu para Portugal e Espanha. A maior parte, enfatiza, no fim das contas foi parar na Inglaterra, a quem os ibéricos deviam os tubos. Galeano procurou tecer paralelos com a contemporaneidade para mostrar que a rica região do passado continua marcada pela pobreza no presente. Exemplo gritante é o das minas de Potosí, na Bolívia, ricas em ouro e prata extraídos pelos espanhóis por meio de trabalho indígena. Potosí está hoje para a Bolívia como a Região Nordeste para o Brasil, e ambas estão entre os territórios mais pobres do continente.
Depois dos metais veio a exploração agropecuária. Numa engrenagem perfeita com o sistema econômico internacional, cada país se identificava com um determinado produto. A América Central se especializou no fornecimento de frutas tropicais; o Equador, bananas; Brasil e Colômbia, café; Cuba e Caribe, açúcar; Venezuela, cacau; Argentina e Uruguai, carne e lã; a Bolívia produzia estanho e o Peru, peixe. Os mecanismos eram idênticos: gerar mercadorias primárias, com baixos preços e lucros para poucos. “Com melhor ou pior sorte”, escreve Galeano, “cada produto foi-se tornando um destino frequentemente fugaz para países, regiões e homens”.
O imperialismo britânico substituiu o domínio ibérico no século XIX, fomentando seu próprio desenvolvimento à custa da produção dos países e inibindo as tentativas de desenvolvimento autônomo. Ele discorre longamente sobre a Guerra do Paraguai (1865- 1870) para reforçar seu argumento. Comandados pelos interesses britânicos, Brasil e Argentina promoveram um conflito armado contra a nação guarani, que na época era a mais industrializada e mais comercialmente independente de todas. O resultado foi o maior genocídio da história latino-americana (1,3 milhão de mortos numa população de 1,8 milhão) e o enfraquecimento do Paraguai, que continua sendo “um protetorado sob a ingerência do imperialismo brasileiro e argentino”.
As ex-colônias então tinham de produzir cada vez mais e com métodos cada vez mais baratos para atender às necessidades dos compradores e não perder mercados. A solução para uma maior “eficiência” foi ampliar latifúndios e radicalizar a exploração do trabalho. A United Fruit Company, por exemplo, citada em “Cem Anos de Solidão”, era a encarnação do poder na América Central. A empresa (norte-americana) comandava os destinos das nações, inclusive promovendo golpes militares para instalar nos palácios governantes de sua confiança. Outro fato decisivo: em 1898, os Estados Unidos derrotam a Espanha na batalha de independência de Cuba e se apossam da ilha. Teria começado aí o controle dos Estados Unidos sobre a América Latina, em substituição ao Império Britânico, que entrava em decadência.
A síntese híbrida
Um mérito de “As veias abertas…” é a síntese obtida. O autor conseguiu compilar dados amplos com uma escrita emocional e cuidadosa, mesclando estudo e experiência própria (aos 31 anos, quando concluiu a obra, Galeano já havia conhecido pessoalmente a realidade da maioria dos países citados). Por se tratar de um texto declaradamente mobilizador, no sentido político, e híbrido, no sentido literário, muitos leitores não resistiram à tentação unilateral de endeusá-lo ou demonizá-lo. No entanto, o obra hoje não me parece uma choradeira de perdedores que se recusam a olhar para frente; tampouco uma resposta satisfatória para os motivos dos nossos atrasos; e muito menos um constructo para pio crédito.
Impossível não considerar que mesmo os países com maior grau de desenvolvimento (Brasil, Argentina e México) ainda não conseguiram escapar das “armadilhas” da História. Grande parte das receitas comerciais dessas três nações ainda vem da exportação de commodities e produtos primários. A ideia de desenvolvimento sem mercado interno forte, para a qual Galeano também chamou a atenção, ainda circula com força entre as “elites”. Fica a pergunta: A mundialização das economias no século 21 apagou o fulgor desse “clássico”?
Vargas Llosa responde assim: “A globalização não é, por definição, nem boa nem rui: trata-se de uma realidade do nosso tempo, resultante de uma soma de fatores, do desenvolvimento tecnológico e científico, do crescimento das empresas, capitais e mercados e da interdependência que isso foi gerando entre as diversas nações do mundo. Grandes prejuízos e grandes benefícios podem advir dessa progressiva dissolução das barreiras que, antes, mantinham os países confinados em seus próprios territórios e, muitas vezes, em luta aberta com os demais. O bem ou o mal que a globalização traz consigo depende, é claro, de cada país, e não dela mesma”.