Quem (e como) eram esses leitores de antigamente que desapareceram?
Sergio Vilas-Boas
O tema “educação para a leitura no Brasil” é intrigante. Escritor bissexto e leitor tardio, sigo tentando entender como se formam novos apreciadores de livros. Suspeito que a maioria dos jovens brasileiros só conhece livros didáticos, e que, terminada a escola, os garotos perdem totalmente o contato com a leitura.
Ainda há educadores que partem do princípio de que “hoje se lê menos do que antigamente”, e uma das causas disso seria a TV e a internet. Mas quem (e como) eram esses leitores de antigamente que desapareceram? Logo percebo que o incentivo à leitura – na idade escolar, especialmente – é um campo ainda pouco compreendido.
Dizem que quem lê muito é mais crítico. Encontro então três definições para “indivíduo crítico”: aquele que, ao deparar-se com uma determinada afirmação, consegue situá-la nos possíveis contextos de interpretação e, a partir daí, examinar seus sentidos e implicações; aquele capaz de compreender a realidade que o cerca e posicionar-se diante dela; aquele que percebe os jogos de poder e de dominação social e se insurge contra eles.
Sou hoje mais crítico porque me tornei leitor? Talvez. Insurgi-me contra alguém ou algo? Contra o consumismo, talvez. Na verdade, não vejo vínculo direto entre leitura e comportamentos saudáveis, positivos, progressistas. A gente fica melhor ou pior, mais solidário ou misantropo, mais crítico ou alienado, quando se torna leitor? Ah, isso pode ocorrer, sim, conforme o caso, mas a premissa não se sustenta como regra geral.
Os principais fatores relacionados à criação do hábito de leitura em uma pessoa são: ter nascido numa família de leitores; ter passado a juventude num sistema escolar preocupado com o hábito de leitura; o preço do livro; o acesso ao livro, que envolve distribuição eficiente, número de pontos de venda, de bibliotecas etc.; e o valor simbólico que a cultura nacional lhe atribui.
Evidentemente, há uma relação direta entre poder consumir e poder ler (poder comprar) livros. Quem consome mais pode decidir mais, pode produzir mais, e acaba também tendo condições de ler. Mas não é porque lê mais que uma pessoa pode consumir mais; é por poder consumir mais que ela pode ler mais, se quiser. Parece apenas um jogo ardiloso de palavras, mas é um fato.
O livro pode até ser barato, mas se não houver pontos de venda em todo o país ele não será comprado. Ele pode mesmo ser grátis. Mas se não houver bibliotecas ele continuará não sendo lido. A escola pode valorizar a leitura, mas se a sociedade não o fizer o hábito se extingue ao final da aula. Nisso não sou uma exceção.
Meus pais não eram leitores; meus parentes em geral não são leitores; meus colegas de ensino fundamental e médio não eram leitores; meus professores do ensino fundamental liam pouco também. Jornais ou revistas raramente circulavam em minha casa. Cada um ficava muito consigo mesmo, mas nunca flagrávamos um ao outro segurando um livro.
Um dos pilares do discurso da “salvação pela leitura” está fincado na obsessão pela ideia de que a leitura só pode ser um prazer. Prevalece a crença de que não se lê ou de que pouco se lê porque a leitura predominante é desprazerosa, obrigatória e pouco emotiva. Para fazer com que o sujeito se torne leitor, então, seria preciso encontrar na leitura paixão, sedução, prazer, fantasia. Será? Quer dizer então que não pode haver dificuldade nenhuma na leitura?
Lembro-me das minhas leituras de clássicos da literatura brasileira como obviamente penosas, porque obrigatórias, porque não faziam sentido e não me conduziam a nenhum objetivo. Apenas compunham um ato vazio de repetição, em que os professores também insistiam em um mesmo pressuposto: o de que meus colegas e eu deveríamos seguir os parâmetros dos especialistas (os “críticos” – do centro).
Meu ingresso no mundo da leitura ocorreu tardiamente, sim, mas a tempo. Sou leitor graças a uma enorme vontade de saber, embora eu possa apontar dezenas de pessoas que leem avidamente (com enorme curiosidade também) sem no entanto modificar ou expandir seu modo de pensar. Ao contrário, para algumas dessas pessoas, a leitura não fez nada além de reforçar verdades preestabelecidas.
Mas como, então, sem a influência do meio, pude me tornar leitor? Lutando de alguma forma contra o mesmo meio a fim de superá-lo; adquirindo consciência de mim mesmo; movendo-me no sentido de me transformar no que sempre fui (ou no que de repente arbitrei que queria ser); desfocando as condições exteriores.
Hoje ler é para mim uma questão de sobrevivência. Leio cada vez mais. Leio para regozijar-me em um estado muito particular de alienação. Finalmente compreendo que nunca quis ser rico ou famoso. O que busquei obstinadamente nos últimos vinte e cinco anos – e continuo buscando – é uma vida sossegada, artística e contemplativa na qual a independência financeira esteja a serviço da criação. A escrita é apenas a luva que os meus dedos precisavam. (Publicado em 2010)