Joan Didion enfrenta limitações físicas e cognitivas ao escrever sobre a perda da filha única vinte meses após a morte do marido
Sergio Vilas-Boas
“Rascunho”, novembro/2012
Memórias são reminiscências, mas também o nome dado a um gênero literário derivado da autobiografia. Embora as enciclopédias normalmente esclareçam que ambos, memória (memoir) e autobiografia, resultem de textos autobiográficos — nos quais se pressupõe que autor e protagonista sejam a mesma “pessoa” —, essas duas formas narrativa são diferentes em estrutura e estilo.
Espera-se que a autobiografia cubra um amplo espectro da vida, enfocando, inclusive, todo o processo formador da personalidade. Esse escopo cronológico não é tão amplo em um livro de memórias. Não se espera do memorialista uma reconstituição integral — da ancestralidade à madurez. Já as autobiografias lidam, tradicionalmente, com temas mais públicos que privados.
Em seu Palimpsesto (1995), Gore Vidal (1925-2012) oferece a sua própria definição: “As memórias (memoir) são a maneira pela qual alguém se recorda de sua própria vida, enquanto uma autobiografia é História, e requer pesquisa, exatidão, checagens”. Por este raciocínio, as memórias seriam mais maleáveis na estrutura e mais intimistas no estilo. O autor se detém apenas em algumas fases ou episódios.
Nos últimos anos, os críticos passaram a olhar com certa reserva para histórias reais escritas em primeira pessoa, talvez pela crescente publicação de “relatos de superação” sentimentais. O ano do pensamento mágico (2005), de Joan Didion, ao contrário, acabou emprestando credibilidade a esses gêneros/subgêneros. Diferentemente da maioria das narrativas vivenciais, não foi recebido como imaturo, narcísico ou supérfluo. Ao contrário, público e crítica identificaram-no como “necessário”.
Nele, Joan aborda os doze meses que se seguiram à morte súbita do roteirista John Gregory Dunne, com quem ela havia sido casada quarenta anos. Apesar de sincero, honesto e muito bem escrito, certamente não é o melhor livro de Joan, uma escritora sólida, estilosa e com uma obra coesa; e o fato de ter-se tornado o livro mais comercialmente bem-sucedido da carreira dela não deveria de forma alguma ser visto como um demérito.
“Quem sofre uma perda recente fica com um certo olhar que talvez seja somente reconhecível pelos que já viram aquele mesmo olhar no próprio rosto. Notei isso no meu rosto e agora percebo-o nos outros. Esse olhar reflete uma enorme vulnerabilidade, é como estar nu e desarmado. É o olhar de quem sai do oftalmologista com as pupilas dilatadas e encara a luz do dia, ou o olhar de quem usa óculos e tem subitamente que retirá-los”, ela escreve no pungente O ano do pensamento mágico.
Afetos familiares
O recém-lançado Noites azuis (2011) é a perturbadora continuação do livro anterior. Outra perda, outra morte, mas desta vez com conseqüências desestruturantes. A (aparente) motivação agora é Quintana Roo, a filha adotiva e única do casal John e Joan. Após uma longa série de complicações decorrentes de uma pneumonia (problemas com a depressão e o alcoolismo também a afetaram), Quintana faleceu. Tinha 39 anos. Isso, vinte meses depois do pai, John. Quando John sofreu seu improvável, súbito e fatal infarto, aliás, Quintana estava no CTI do Hospital Beth Israel North, em Nova York.
Enquanto o primeiro livro documenta a digestão dos efeitos da perda do marido [“A vida muda num instante. Você se senta para jantar, e aquela vida que você conhecia acaba de repente”], o segundo procura expressar — desta vez com premeditado hermetismo — um infortúnio tão singular quanto inenarrável [“Não quero mais recordações do que foi, do que quebrou, do que se perdeu, do que estragou”].
O título da obra, explicitado nas primeiras linhas, além de translúcido, é paradoxal: “Em algumas latitudes há uma época do ano, anterior e posterior ao solstício de verão, perfazendo-se algumas semanas, em que os crepúsculos se tornam longos e azuis. (…) Nas noites azuis pensamos que o fim do dia nunca virá. (…) As noites azuis são o oposto do declínio da claridade, mas são também seu aviso”. Pois a condição de Joan é exatamente a do “declínio da claridade”. Sem avisos prévios.
A reflexão sensorial — “o impacto em mim” — é notável em ambos os livros, que recusam a autopiedade. As interrogações são profundas, desprovidas de espiritualismos, e tocam em temas como maternidade, envelhecimento e limitação: “Minha confiança cognitiva parece ter desaparecido de todo. Até a maneira certa de lhes dizer isso, a forma de descrever o que está acontecendo comigo, a atitude, o tom, as próprias palavras, fogem ao meu controle”.
Ensaio pessoal
Seria adequado classificar (supondo que isso tenha importância) esses dois livros de Joan como memórias ou confissões? Seria inadequado, sim, no meu entendimento. As memórias não pressupõem um exame tão agudo, um filosofar tão contínuo, um empenho tão louvável em descrever o “agora” mais que “o ocorrido”. Seria mais exato inclui-las na categoria ensaio pessoal (personal essay), gênero altamente desenvolvido e apreciado na literatura de língua inglesa.
Trata-se de texto narrativo no qual a experiência direta resulta em um aprendizado existencial e/ou na compreensão profunda de um tema de apelo intenso (para o autor). Num ensaio pessoal o autor não tem que demonstrar uma hipótese ou defender uma tese. Importante, contudo, é que as reflexões sejam mais importantes que os fatos aos quais elas se referem. O emprego de técnicas literárias refinadas também é imprescindível. O assunto de um ensaio pessoal é introduzido e exposto conforme os sentimentos, as visões e as perspectivas. Aborda uma fase ou incidente de ampla ressonância interior ao longo do tempo. O ano do pensamento mágico é um exemplar interessante dessa modalidade.
Em alguns casos, o acento de um ensaio pessoal pode ser mais racional (argumentativo) e menos emotivo. Nesse caso, dialoga-se com os leitores sobre assuntos que se confundem com o estilo de vida e a personalidade do autor. O inglês Geoff Dyer é destaque entre os autores contemporâneos de ensaios tão híbridos quanto inclassificáveis. Alguns de seus livros — But beautiful (1992), sobre jazz, Ioga para quem não está nem aí (2003) e O instante contínuo (2005), sobre fotografia, por exemplo — mesclam memórias, viagem, crítica cultural e humor à inglesa.
O fato realmente relevante é que tudo o que Geoff escreve tem como ponto de partida as experiências dele próprio, diretas (em campo, em ação) ou indiretas (o “pensador” em seu gabinete). O inusitado produto final de suas divagações idiossincráticas tem uma atração irresistível, entre outras coisas, porque dissolve as quadradas noções que normalmente alimentamos sobre “essa coisa de gênero”.
Eixos instáveis
A temática de Noites azuis não é tão focal quanto a de O ano do pensamento mágico. Ela se esgarça um pouco. Oscila entre a reflexão sobre pais e filhos [“mas não os filhos per se, não os filhos enquanto filhos”] e a impossibilidade da autora de enfrentar as certezas de seu envelhecimento: “Só à medida que as páginas avançaram um pouco mais percebi que os dois assuntos eram o mesmo”. O processo da escrita de Joan em condições tão adversas fascina.
O self que ela nos revela em Noites azuis não é afetuoso, charmoso ou lírico. Isso desconfortou muitos resenhistas e leitores condicionados pelo memorialismo solidário do tipo “vem comigo, pois a minha transformação será também a sua”. Não, Joan sequer insinua que o sofrimento pode levar à redenção. O sentimentalismo trivial é terminantemente recusado, assim como a auto-complacência.
Apesar de imersa em si mesma, Joan busca um ângulo exterior. Procura ver-se a si mesma como outra, sem acreditar piamente que a Joan escritora é capaz de observar/interpretar a Joan que sofre. Uma vez ela afirmou em entrevista que nunca foi muito interessada em pessoas, em entender pessoas. Noites azuis revela claramente essa falta de empatia. A desilusão da escritora que procura e não encontra as palavras vai debilitando suas auto-referências.
Como as acumulações de indícios tampouco facilitam o processo, surgem resistências: “Você tem suas lembranças maravilhosas, disseram as pessoas depois, como se lembranças fossem consolo. Lembranças são, por definição, de tempos idos, de coisas passadas. Lembranças são os uniformes de Westlake no armário, as fotos desbotadas e rachadas, os convites de casamentos de gente que não está mais casada, os cartões de agradecimento de funerais de gente cujo rosto já esquecemos. Lembranças são o que não podemos mais lembrar”.
Universos particulares
“Cada pessoa traz em si a condição existencial de toda a humanidade”, escreveu Montaigne (1533-1592). Ou seja, quando uma pessoa fala de si mesma, ela está expressando algo que, no fundo, diz respeito a todos nós. Historicamente, as narrativas autobiográficas sempre cristalizaram esse diálogo entre o particular e o público, o individual e o coletivo, o factual e o simbólico, o exemplo e a generalização.
No entanto, para uma análise mais arejada desse tipo de texto, alguns pressupostos seriam recomendáveis: primeiro, admitir que, embora não ancorada na invenção pura e simples dos fatos, a expressão do realmente vivido é uma construção simbólica; segundo, ter em mente que muitos escritores e críticos acreditam que o (auto)biográfico desmerece a ficção, e essa crença, no Brasil, influencia o modo como vislumbramos a arte literária.
Philippe Lejeune escreveu em O pacto autobiográfico (Editora UFMG) que o fato de a liberdade individual, na escrita como na vida, passar pela narrativa, não significa que ela seja uma ficção. “Ao me colocar por escrito, apenas prolongo aquele trabalho de criação em que consiste qualquer vida. É claro que, ao tentar me ver melhor, continuo me criando, passo a limpo os rascunhos de minha identidade, e este movimento vai provisoriamente estilizá-los ou simplificá-los. Mas não brinco de me inventar”.
Ao seguir as vias da narrativa, o autobiógrafo tende a ser fiel à sua verdade. “Se a identidade é um imaginário, a autobiografia que corresponde a esse imaginário está do lado da verdade. Nenhuma relação com o jogo deliberado da ficção”, escreve Lejeune. Ao mesmo tempo, Lejeune questiona a validade dos debates em torno da dicotomia verdade-ficção em textos biográficos: “Meus argumentos são convincentes ou parecerão sofismas? Será que se trata de fato de convencer? Isso é uma discussão ou um conflito? Alguma vez já se viu alguém mudar de opinião a esse respeito?”.
Os ensaios pessoais são abundantes em língua inglesa. A zona do desconforto (Jonathan Franzen), Patrimônio (Philip Roth), Uma mente inquieta (Key Jameson), A luta (Norman Mailer) e Um livro por dia (Jeremy Mercer), por exemplo, são bastante atraentes. A coletânea The art of personal essay (1997, edição de bolso), organizada por Phillip Lopate, fornece uma ampla visão sobre as luminosidades desse gênero — de Sêneca ao próprio (e renomado) Lopate.
Não podemos nos esquecer de obras tipicamente memorialísticas e abrangentes como Lutando na Espanha (1938), de George Orwell e A trégua (1963), de Primo Levi, que descrevem a sobrevivência em condições extraordinárias. No Brasil, o universal imbricado na vivência assumidamente real é marcante em O lugar escuro, de Heloísa Seixas, e A queda, de Diogo Mainardi. Embora tenham sido tratadas como “ficção”, oferecem pontos de vista tão ensaísticos quanto pessoais.
A exposição nua
A escrita autobiográfica envolve muitos riscos. Por exemplo, as pessoas podem discordar do (ou ridicularizar o) caráter “estritamente pessoal” da narrativa. Por isso, os textos de não ficção escritos em primeira pessoa se baseiam em uma relação de honestidade e confiança entre o autor e o seu público. Em Noites azuis, Joan expõe corajosamente a sua condição. Mas, em vez de sofrer junto com Joan, assistimos ao sofrimento dela, uma senhora de 77 anos fragilizada pela solidão.
A principal diferença entre O ano do pensamento mágico e este Noites azuis reside exatamente no fato de que a viuvez é reparável, mas a perda de uma filha, não. As tentativas de reavivar Quintana pela lembrança fracassam, assim como as investidas para tentar resgatar a forma e o estilo do livro anterior. Joan procura criar uma ordem dentro da aleatoriedade. Repete propositalmente frases e estruturas (e revisita objetos há muito guardados, e reitera o “e se”, e formula perguntas complexas) com o intuito de mostrar que as possibilidades existentes são insatisfatórias.
O trecho em que revê as anotações que fez em seu romance A última coisa que ela queria (Record, 1996) ilustra bem essa impossibilidade: “Ofereço-as [as anotações] como uma representação do quanto eu costumava me sentir à vontade quando escrevia, da facilidade com que o fazia, da pouca atenção que dava ao que estava dizendo até que já tivesse dito. Na verdade, seja como for, o que eu fazia na ocasião era tudo menos escrever: eu não fazia mais do que esboçar com regularidade e deixar que essa regularidade me mostrasse o que eu estava dizendo”.
A coragem explicitada em O ano do pensamento mágico transformou Joan em uma escritora “popular” (com tudo o que isto implica). Noites azuis, por outro lado, é a prova de um esgotamento existencial que atinge o próprio ato de escrever. Ela dormiu com a noite azul e acordou na escuridão, sentindo-se, além de tudo, arrependida como mãe. A arte, pelo menos desta vez, não foi de grande auxílio para a sua catarse, nem esta para aquela.
TRECHO: Ainda não tenho noção de quando aconteceu, nem por que aconteceu, nem mesmo como exatamente aconteceu. Tudo o que sei é que um dia, lá pelo meio de junho, depois de caminhar até minha casa com uma amiga após um jantar na Terceira Avenida, eu acordei no chão do meu quarto, o braço esquerdo, a testa e as duas pernas sangrando, sem conseguir me levantar. Parecia claro que eu havia caído, mas não me lembrava de ter caído, nem me lembrava de ter perdido o equilíbrio e tentar recuperá-lo, o habitual prelúdio de uma queda. Com certeza não me lembrava de ter perdido a consciência. (p.108)
A AUTORA: Joan Didion, 77 anos, nasceu em Sacramento, Califórnia. Estudou inglês em Berkeley. Seu primeiro romance é Run River (1963). Casou-se com John Gregory Dunne e, em 1965, os dois adotaram Quintana Roo, filha única. Em 1973, começa a escrever para The New York Review of Books. No jornalismo, explorou diversas formas de não ficção. Algumas de suas reportagens e ensaios foram incluídas nas coletâneas Slouching Towards Bethlehem (1968) e The White Album (1979), entre outras. Where I Was From (2003) é uma narrativa autobiográfica sobre as suas origens californianas. Em 2005, recebeu a Medalha de Ouro da American Academy of Arts and Letters. O ano do pensamento mágico (2005) conquistou o National Book Award de não ficção.