Cantos e contos cifrados são reveladores do sincretismo destes quilombolas de Jaboticatubas (MG)
Sergio Vilas-Boas
O mito fundador do Candombe em Mato do Tição tem sido contado assim: vários negros recém-libertos pela Lei Áurea perambulavam pelos arredores da sede da Fazenda do Barão. O que fazer?, perguntaram-se. Vamo pro mato pegá pau pra fazê tambô. Partiram então em busca de troncos de bananeira-do-campo ou de farinha-seca. Bananeira-do-campo, claro, dá no campo; e farinha-seca dá per’de curtura. Ambas são madeiras úmidas, de miolo mole, fácil de ser escavado com martelo e formão.
E construam-se os tambores. Três, na verdade. De tamanhos diferentes e cada qual com um nome: chama (menor); requinta (médio); santana (maior). Será que no final do século XIX, época da libertação dos escravos, os negros de Mata do Tição já se referiam assim aos sagrados tambores do Candombe? Diz a lenda que os negros escavaram e entalharam os tambores, fizeram um furo lateral para a saída do som (do diâmetro de um dedo indicador) e cobriram a boca com couro de boi pregueado. Para afinar (ou cortá a roquidão), aproximaram de uma fogueira os tambores, que têm a forma de um cálice.
O problema foi que o tal Barão se irritou com a batucada. “Queimem os instrumentos!”, ordenou. Dito e feito. Mas, como o feitiço e o antifeitiço andam de mãos dadas, o Barão começou a penar. A fumaça da fogueira o perseguia como nuvem de azar. Seus olhos lacrimejavam dia e noite. O desespero o exasperou. Chamaram o padre. “Que foi que o senhor fez?”, perguntou o padre. Quemei os tambô dos nêgo, conta Jair Teodoro de Siqueira, 73 anos, guardião do mito do Candombe em Mata do Tição ou simplesmente Matição.
Seu Jair garante que o padre foi categórico. Intão só tem um jeito do Barão ficá livre da fumacera: deixá os nêgo fazê otros tambô e podê tocá eles. O Barão enfeitiçado não só aceitou o conselho do padre como mandou matar bois e porcos para uma festança regada a muita cachaça. Aliviados, os negros construíram novos tambores, tocaram e agradeceram ao Barão, inaugurando assim a tradição do Candombe em Matição: Êêê, Barão Enouê/ Barão Enouê/ Êe, Barão, é na palma de pontê/ Barão Enouê/ Êe, Barão Enouê/ Êe, Barão, é na palma de ponta machado/ Barão Enouê/ Barão Enouê.
Canto e conto cifrados por Seu Jair são reveladores do sincretismo destas bandas de Minas. Matição é uma espécie de quilombo encravado na zona rural do município de Jaboticatubas, a 70 quilômetros de Belo Horizonte. Seu Jair é quem irradia os saberes fundamentais. Mas as ações e devoções da comunidade giram em torno da casa de pau-a-pique de sua irmã, Dona Divina de Siqueira, 75 anos, líder espiritual de um extenso clã.
Candombe é um ritual afro que antes era vedado a não-iniciados. O ritual estava para os negros como a maçonaria para os brancos. No passado, os tambores de Candombe eram objetos sagrados. Havia rituais para a iniciação tanto de novos tambores quanto de novos percussionistas.
O Candombe também está envolto em lendas e superstições e busca preservar sua “coerência interna” sincretizando-se. Pesquisadores suspeitam (sobre isto pouco se sabe ao certo) que, a partir do Candombe, teriam nascido outras duas manifestações culturais: o Congado e o Moçambique.
Em Matição, a data oficial do ritual é a noite de São João (meia-noite do dia 23 de junho), quando o braseiro místico desafia a ciência e fortifica a fé de pés descalços, no dizer da professora jaboticatubense Vanda dos Santos Gonçalves, co-autora (com Anna Lúcia Leão Costa) do livro Ao Pé das Jaboticatubas (1988). À meia-noite só quem tem fé pisa descalço nos braseiros das fogueiras.
O Candombe também é fruto da tendência do ser humano de acreditar em algo acima das coisas perecíveis. De linguagem dialética e intrincada, os candombeiros de Matição cumprem o papel de conectar elementos da religião iorubá com o catolicismo doméstico. A casa de Dona Divina – sem água encanada nem forro nos desvãos – é um exemplo disso.
Um dos seis cômodos da casa é templo. Nele, imagens de santos, santas e orixás estão permanentemente iluminadas por velas. Um espaço sagrado de devoção, tanto quanto o rapé foi consagrado pelo hábito. Todos, ao longo dos dias, inspiram o rapé feito por Divina. Compro fumo-de-rolo, corto picadin, põe pra torrá. O pó cor de terra adubada, guardado em latinhas tipo aneleiras, é como cachimbo da paz: quem tem oferece, quem não tem pede.
E Dona Divina? Ela é uma senhora de gestos lentos mas com parábolas na língua. Sou médium de nascimento. Mas só em cura de meu véi foi que fiz o santo. Em outras palavras: só quando o marido João Batista ficou muito doente foi que ela aceitou a sua própria sensitividade e passou a exercê-la. Mas ela prefere não alongar esse assunto. Até porque benze e ora com uma naturalidade e uma generosidade que dispensam verborragia. Dona Divina, na verdade, premune.
A saúde de Seu Jair, como a de Dona Divina, não esteve muito benta. A história dele tem sido uma fratura exposta. Aos dez anos, perdeu o polegar direito em moenda de cana. Adulto, sofreu derrames, quebrou a perna direita três vezes (no calcanhar, no joelho e na coxa) e queimou o peito com óleo quente na altura do coração. Neste começo chuvoso de 2005, já não se conduz por si só. Apóia-se permanentemente em uma vara de pau-de-trêis-fôia. Nas curvas e nos descaminhos, algum anjo da guarda o toma pelo braço. Como aprendeu o que aprendeu? Cantá, aprendi com a natureza. Mestre de Candombe, o povo é que me quis.
Candombe precisa de um patrulheiro que previne bagunça e confusão; e um capitão para educar a meninada. De algum modo, Seu Jair e Dona Divina continuam cumprindo esses dois papéis. Tocante ver atravessando a casa venerável Uanderson, Uemerson, Gilson, Francis, Rômulo, Guido, Luiz, Lílian, Edinei, Laura, Igor, Elvis, Fábio, Robson, Liliane, Deiriene, Ana Luiza, Isadora, Gabriela, Taís, Luan e pelo menos mais uma dezena de crianças e adolescentes alvoroçados.
Há um grupo de candombeiros mirins em formação: Edinei (com o tambor chama), Uanderson (com o requinta), Uemerson (com o santana), Robson (tocando guaiá), Gilson (tocando puíta). E todos os demais moleques entoam canções de cunho formador, educativo: Num mexe comigo não/ cê ta me machucano/ cê ta caçano jeito/ d’eu saí daqui chorano. Ou: Minha mãe bateu ni mim/ com vara de cansanção/ eu chorei a noite inteira/ com uma dor no coração.
No anoitecer do dia 8 de janeiro de 2005, quando a Faop realizou a oficina de construção de tambores e o ritual temporão, milhares de vagalumes iluminaram uma farra incrível. Dona Bina, irmã de Divina, captou a metáfora: Quanto vagalume piscano! Parece belorizonte de noite! Os tambores suaram ao fogo para depois soar sob as batidas negras. Seu Jair cantou e chacoalhou o corpo tomado: No tempo que bicho falava/ o tatu era escrivão/ ele ficô com a unha cega/ de tanto escrevê no chão.
Para entrar na roda e puxar outra letra, o Candombeiro acaricia o tampo do tambor chama, o menor dos três. Taí o mais suave pedido de silêncio de que se tem notícia. João Marcolino Pinto (ou simplesmente Colino), filho de Dona Divina, é o anjo de Matição. Agrega e contagia com sua timidez, paciência e método para entalhar tambores que ele nem sabe tocar. Fiz um uma vez. Tocaro ele. Deu certo. Voltei e resolvi fazê mais dois. Num toco bem, não. Gosto é de ouvi.
Evandro Siqueira, filho de dona Nilce, sobrinho de Divina, conhece o tocante e tem sensibilizado as crianças para o passado que engendrará seu futuro. Neste 2005, Evandro é membro da banda folclórica Leo Marques e os Tambores do Matição (www.leomarques.com.br) com alguns cds gravados.
O Candombe começa com o repicar do chama. Em seguida o requinta reverbera no segundo tempo do compasso. Santana entra no terceiro tempo com um som mancado, meio atravessado, explica Evandro. A caixa (espécie de tarol) entra no terceiro ou no quarto tempo, seguida pelo guaiá (chocalho de cipó trançado sobre cabaça contendo sementes) e pela puíta (cuíca de som grave).
Ao fundo, vozerios: Culino [João Marcolino], empresta o formão! Badu, cadê Renê? Bina, chama Izaura! Nilce? Num sei de Nilce, não! No miolo, narrativas enigmáticas. A pessoa que conduz os cantos no Candombe é também quem puxa o bate-pé. Não se vê uma formação grupal com coreografia ou cenografia específica. Os gestos e movimentos são fruto da criatividade individual, com estímulo, claro, ao entusiasmo coletivo. O que sobra, com folga, é espaço para coisas ditas e não ditas. Assim, o Candombe de Matição segue imantado pelo mito: Êêê, Barão Enouê/ Barão Enouê…
Escrito em 2006 para o projeto Resgate Cultural da Estrada Real, patrocinado pelo Sebrae-MG e realizado pela Fundação de Arte de Ouro Preto (Faop).