As ideias me ocorrem de maneira bastante caótica
Sergio Vilas-Boas
Sou também jovem, ou melhor, sinto-me: 45 anos não é nada. Era um meio-adulto quando optei pela faculdade de jornalismo mais pelo fato de estar encantado com literatura que por qualquer outra coisa. Desde então não parei de escrever: crônicas, reportagens, ensaios, teses, contos e romances. Apesar de mais de duas décadas de produção e publicação, estou certo de que ainda não dei o melhor de mim.
Não é questão de entrega, não. Entrego-me à escrita a ponto de ela me possuir. Os convivas sofrem com o meu alheamento. Quando plenamente imerso num projeto narrativo (vamos chamar de projeto narrativo tudo aquilo que envolve a arte de contar uma história), tenho de me advertir até sobre a hora de comer. Afinal, de que adianta encher-se de arte e esvaziar-se de corpo?
Cada mergulho criativo é uma experiência singular. O conhecimento sobre o fazer é cumulativo. Mas não há fórmulas nem fôrmas. O que existem são formas: a forma que você atinge, que eu atinjo, que eles/elas atingem. Espera-se que tanto a forma quanto o conteúdo sejam originais ou irrepetíveis. Quem escreve, assim como quem pinta ou filma, está sempre em busca de algo novo (para si, pelo menos).
As ideias me ocorrem de maneira bastante caótica. É eu me colocar à disposição delas e elas surgem aos borbotões. Então, a ideia que se tem da falta de ideia é um mito, na minha visão. Se você se puser em sintonia com a geração de insights, os insights vêm. Pode contar. O problema é outro: quem tem milhares de ideias não tem, na verdade, nenhuma. É nadar, nadar e morrer na praia (mas, por favor, evite esse tipo de clichê nos seus textos, ok?).
Estou convencido de que comigo funciona assim: agarro-me a uma (somente uma) ideia e provoco insights para que ela encorpe. Pergunto-me coisas aparentemente bobas como: qual a história? Quantos personagens ela terá? Qual o nome de cada um? O que acontece com cada um? Devo trabalhar com uma ocorrência simples que cria panoramas ou fatos de grandes proporções que iluminam uma experiência individual?
Entendo a demanda atual das pessoas por medidas concretas, diretrizes exeqüíveis, providências certeiras. Vivemos numa era tecnológica, não literária. Estamos longe do século 19, quando o romance era uma espécie de telenovela, ainda que para poucos (o analfabetismo era alto, na época). Se você, jovem escritor, por acaso tem esse tipo de demanda, anote uma dica: ajude-se, mas não dê bola ao falso conforto da autoajuda.
Claro que você precisa ficar atento ao que os bons escritores dizem ou escrevem, sem jamais se esquecer de que os bons escritores não necessariamente são os mais famosos ou os que vendem mais. Siga aqueles cuja qualidade você aprendeu a confiar, ou aqueles que lhe foram indicados por gente que você confia. Acompanhar a produção e o pensamento dos nossos pares é importantíssimo. Estudar também. Estudar literatura, claro, como não?
E enquanto acompanha e estuda você vai experimentando. Como disse, cada experimento é um experimento. Até hoje não tenho clareza sobre a minha melhor maneira de trabalhar. Projetos narrativos já me ocorreram redondinhos, numa sequência lógica incrível, como num download. Outros surgiram em doses homeopáticas, empurrando-me para uma digestão longa, que não tem como ser medida em horas, meses ou anos.
Dentro do possível, evito ao máximo a ansiedade (de ter ideias, de ter um projeto, de realizar o projeto, de publicá-lo etc.). Se você olhar bem, verá que transito entre duas vertentes do mesmo Grand Canyon: a reportagem com requintes literários em que nada se pode inventar; e o romance ficcional, no qual tudo poderia, em tese, ser inventado e, no entanto, não o é. Entre o real e a invenção, meu caro, há mil nuances.
Publiquei mais textos jornalísticos ou ensaísticos que textos ficcionais, e isto é relativamente fácil de explicar, no meu caso: a “invenção” de uma história, para mim, é um drama maior. Mexe comigo por inteiro. Revolve-me as vísceras. Impõe-me certa irracionalidade. Tudo depende só e somente só de mim, entende? Isso para dizer-lhe o seguinte: deixe-se possuir pelo projeto, mas cuidado com a autocrítica excessiva.
Quando o projeto é de ficção, posso me sentar diante do computador com objetivos claros ou vagos, não importa. O ritmo da execução vai variar conforme o “calor”, os progressos e os retrocessos (trechos ou capítulos inteiros podem ir parar na lata do lixo). Mas uma coisa é certa: dificilmente produzo mais que vinte e poucas linhas aproveitáveis por dia. Mesmo assim, essas tais linhas nunca serão as mesmas nos dias seguintes.
Antes de partir para a segunda bateria de vinte e poucas linhas, reescrevo obsessivamente a primeira bateria. E assim por diante. Porque escrever, caro jovem, é reescrever, na verdade. Conheço autores que juram que o que brota primeiro é o que fica. Duvido. Ou melhor, admiro, acho incrível, até. Mas comigo não é assim. Ao contrário, minhas primeiras investidas costumam ser aceitáveis em termos de coesão e de gramática, mas toscas do ponto de vista artístico.
Não estou sendo excessivamente autocrítico, não. É fato. Tanto que, quando releio as tais vinte e poucas linhas no dia seguinte, ou depois de amanhã, o que vejo são esboços, estudos, possibilidades, enfim, algo com uma energia potencial. Ah, pois isto nos leva a outra questão importante: qual a hora de parar? Quando um autor atinge a certeza de que seu projeto está terminado? Lamento se a minha resposta o decepciona, mas é assim: eu sinto o ponto final. Como aqui, agora.