Ah, “não ficção”: esse termo tão negativo quanto negador,
tão certeiro quanto indiscreto, tão confortável quanto ardiloso
Sergio Vilas-Boas
Introdução ao livro “Jornalismo & Literatura”, de José D. de Brito (org.), volume 3 da série Mistérios da Criação Literária, editora Novera, 2008.
Literatura e Jornalismo. Jornalismo e Literatura. Os debates universitários sobre este tema se travam em torno das interseções possíveis ou impossíveis. O que geralmente se pergunta é se o jornalismo é literatura. Pergunto eu: tal questão tem tanta importância assim? Talvez sim, talvez não, pouco se sabe a respeito.
O problema é que, para tentar respondê-la satisfatoriamente, seríamos obrigados a definir com clareza o que é a literatura e o que é o jornalismo; e se tais conceitos forem vislumbrados por um ângulo muito agudo as tentativas de resposta podem acabar adquirindo uma entonação ideológica desagradável.
Há estudos acadêmicos relevantes, sérios e desideologizados sobre as relações do jornalismo com a literatura. Alguns me dizem que jornalismo e literatura são água e óleo, que não se misturam; outros argumentam que são nutrientes da mesma porção de terra, ou algo como os dedos desiguais de uma mesma mão.
Leio esses estudos (ou assisto a esses debates) com prazer, preocupação ou tédio, dependendo da qualidade dos argumentos e da forma de exposição. Realmente incríveis as doses de energia consumidas com o objetivo (objetivo?) de captar uma totalidade que, em si, nem me parece desejável.
Tenho visto muitos ensaios e debates que ficam girando ao redor de oposições periodísticas (o efêmero versus o duradouro); de dilemas profissionais-comportamentais (funcionário de jornal versus romancista/contista/poeta); de afãs classificatórios (gênero versus subgênero); e digressões filosófico-estéticas (a arte versus a indústria).
A precariedade intelectual de algumas discussões beira o risível e até diminuem tanto a literatura quanto o jornalismo. Essas maneiras pendulares de sondar o irrespondível não me excitam, confesso. Já outras indagações especulativas como Por que escrevo? (tema do primeiro livro desta coleção), talvez por serem estritamente vivenciais, não acadêmicas, criam um apelo irresistível.
Certas coisas da vida (simples ou complexas) se tornam encantadoras pelo prazer do trajeto, não pelo foco no destino. Diante do meu fastio em relação ao falso problema do ser-não-ser que assombra o assunto deste livro, optei por registrar, aqui, o casamento verdadeiramente íntimo entre o J (Jornalismo) e o L (Literatura), algo há muito tempo praticado e apreciado pelo público – mas talvez desprezado pela crítica.
Esse casamento se chama Jornalismo Literário, definido por Edvaldo Pereira Lima como “reportagem ou ensaio em profundidade, nos quais se utilizam recursos de observação e redação originários da (ou inspirados pela) literatura”. Em comunhão de bens, e até que o mau senso os separe, os métodos de reportar (jornalísticos) e as técnicas de expressão (literária) formam um par prolífico.
Numa coabitação saudável, que escapa à especulação hierarquizante e egocêntrica, podemos saber até o que o Jornalismo Literário não é, com a mesma naturalidade com que sabemos que o amor é infinito enquanto dura. Pois é, Jornalismo Literário não é a cobertura noticiosa de livros e autores; não é ficção, invenção ou história baseada (apenas baseada) em fatos; não é masturbação lingüística; e nem válvula de escape para escritores frustrados, que têm de fazer materinhas descartáveis no dia-a-dia para poder pagar suas contas.
E o mais desolador é a constatação de que o Jornalismo Literário nem sempre se apresenta em forma de crônica. Pelo menos não no Brasil. Por quê? Porque a crônica à brasileira, tão apreciada, singular e excepcional, permite liberdades ficcionais, embora também possa ater-se estritamente ao factual. Se se ativer, ela é uma peça de Jornalismo Literário; do contrário, não, será outra coisa, seja qual for.
Para aceitar o casamento do J com o L precisamos acreditar que o conceito de literatura precisa também englobar o texto de não ficção, esse termo tão negativo quanto negador, tão certeiro quanto indiscreto, tão confortável quanto ardiloso. Por isso há quem prefira nomear o “casamento perfeito” do J com o L como sendo “jornalismo narrativo”, “literatura da realidade”, “reportagem autoral”, “creative nonfiction” etc.
Comparações, termos, conceitos, bah!, quão ridículo também podem ser certos estudos, não? Nesse campo de fusões e confusões, o melhor é se manter maleável, aberto às operações e aos intercâmbios, como tem feito o romancista Gabriel García Márquez durante toda a sua vida. Em suas reportagens – de curta, média ou longa extensão (caso de Relato de um náufrago e Notícia de um seqüestro) –, encontramos os pilares básicos do Jornalismo Literário: imersão, humanização, exatidão, autoria e criatividade.
Infelizmente, esses ingredientes estiveram sumidos do cotidiano dos jornais e revistas brasileiros durante as duas últimas décadas. Mesmo as crônicas, que gozam de uma liberdade e criatividade acima da média, não têm conseguido escapar da mediocridade e do achismo. Hoje, os aspirantes a jornalistas, os que realmente levam a sério a profissão, estão tentando resgatar o legado de repórteres-autores do naipe de Gay Talese, John Hersey, Joseph Mitchell, Ryszard Kapuscinski, Marcos Faerman e tantos outros.
“Uma grande reportagem pode ser um trabalho literário. O leitor é quem diferencia radicalmente o que lê. Imagine que um único fato inexato basta para desqualificar um artigo, enquanto um único fato verdadeiro dentro de um romance leva a crer que todo o resto é autêntico”, declara Gabo.
Já o mais carioca dos escritores paulistas – João Antônio (Malagueta, Perus e Bacanaço) – chama a atenção dos leitores para o “preconceito” (que ainda existe no Brasil) contra os grandes repórteres estilistas: “…o Normam Mailer e o Truman Capote são homens que ultrapassaram isso. Escritores que foram fazer jornalismo, esses caras provaram uma coisa, que é importante para o escritor esse trato da reportagem, do acontecimento vivo. Nessa hora, só num país como o nosso se acha que escritor é superior a repórter. Isso é um subdesenvolvimento tremendo”.
Mailer e Capote, citados por João Antônio, foram expoentes da fase histórica e efervescente de renovação do Jornalismo Literário nas décadas de 1960 e 1970 nos Estados Unidos, e que ficou conhecida como New Journalism (Novo Jornalismo). Os repórteres-autores do New Journalism trouxeram para o Jornalismo Literário outras técnicas narrativas até então não utilizadas, como fluxo de consciência, monólogo interior e digressões. Tom Wolfe, por exemplo, foi um extraordinário curinga naqueles tempos de experimentação e qualidade equivalente à melhor literatura ficcional.
O bom repórter narrativo é aquele que une duas qualidades aparentemente distantes uma da outra para fazer com que uma reportagem (temática ou biográfica) se torne durável, não descartável. De um lado, ele/ela precisa usar o melhor de sua inteligência racional para estudar, levantar informações e interpretações básicas, compreender com profundidade e analisar o assunto que tem pela frente.
De outro, precisa utilizar sua inteligência emocional (incluindo a tal da intuição) para se deixar tocar sensorialmente pelo tema que aborda, pela ressonância interior causada pelas pessoas com as quais irá lidar (tête-à-tête), pelas características subjacentes, sutis, dos cenários por onde circulará para levantar dados objetivos e subjetivos. O importante é, deveria ser, a busca de conteúdo e forma ancorados no real, mas expressos de maneira tão fascinante quanto a dos melhores textos de ficção.
Tudo isso é possível de ser atingido sendo (e considerando-se, e assumindo-se) repórter. Marcos Faerman, autor de grandes reportagens especiais em estilo literário, dizia que sua única identidade possível é esta: “…sou um repórter. Isto quer dizer que não sou um contista, um professor ou um marciano. Sou um repórter e este é o meu ser no mundo e o meu compromisso. Mas será esta uma identidade possível? (…) O repórter tem diante de si o grande desafio da história que deve ser contada. A história que é ‘a vida dos outros’. E que ele deverá entender e viver, até que seja, também, a sua história”.
Faerman tinha razão. Hoje constato que a maioria dos ídolos dos aspirantes a jornalistas não é repórter-autor. Quando pergunto a alunos jovens quais seus ídolos no jornalismo, ouço nomes os mais diversos (alguns nem jornalistas são, acreditem), mas os repórteres, quando aparecem, compõem esmagadora minoria. Por quê? Talvez porque uma das finalidades do Jornalismo Literário, que é aprofundar assuntos e transmiti-los com arte, tenha se perdido ao longo dos últimos trinta anos, deixando pelo menos duas gerações praticamente escravizadas por fórmulas e moralismos.
No entanto, apesar do hiato brasileiro, o Jornalismo Literário evoluiu muito dos anos 1960 para cá, nos Estados Unidos e na Europa. Adquiriu, digamos, uma maior consciência de seu papel, de sua responsabilidade e da necessidade de coexistência com outras formas de se pensar e de se praticar o Grande Jornalismo. Mais: ele ressurgiu no Brasil no final dos anos 1990 com uma força imprevista.
Acredito que, neste contexto, e por sua própria característica e história, o JL voltou a ser, no Brasil, uma alternativa valiosa para o processo de busca por compreensão social, assim como fora a literatura realista no século XIX – ela que, por sinal, foi quem soprou vida ao próprio Jornalismo Literário que então ainda engatinhava.
Essa busca por compreensão social inevitavelmente empurrará os repórteres-autores no sentido de não apenas identificar mazelas mas também dar voz a quem tem soluções viáveis a apresentar (ou a quem já as experimentou concretamente). Um país com uma iniqüidades gritantes como o nosso não deveria dispensar os ferramentais da grande reportagem escrita com técnicas (somente técnicas) literárias.
Sim, o jornalismo praticado pelas mídias de massa ainda tem-se formulado majoritariamente dentro do quadrilátero estatística, efeméride, serviços e opiniões. Opiniões, então, quanta opinião! Cada vez mais. Mas esse jornalismo urgente, descarnado e opiniático – “periódico”, para usar uma definição mais técnica – não é o único que existe.
Agora podemos internalizar que o Jornalismo Literário, por exemplo, é uma entre várias alternativas para a oxigenação dos textos herméticos (da academia), pernósticos (dos colunistas) e banais (dos noticiários). As reportagens especiais de fôlego estão retornando ao cenário, aqui e ali. E então podemos de novo dizer que a genuína índole do Jornalismo Literário seria fazer com que conteúdo e forma sejam parceiros da mesma aventura, assim como são na boa literatura de ficção.