O desfile de agosto em São Gonçalo do Rio Preto é uma encenação ressignificada do périplo dos ancestrais negros
Sergio Vilas-Boas
A marujada, uma das festas religiosas mais populares de Minas, desfila há duzentos em São Gonçalo do Rio Preto (MG). Homens em diversas cores compõem regimentos de fé em sagração a Nossa Senhora do Rosário que, segundo a lenda, deu rumo a um navio negreiro desgovernado por brancos.
– Ô, meus gajeiro. Afinai os instrumento… – ordena o patrão Gonçalo Aparecido da Silva, serenamente, antes de cada ensaio ou desfile.
Patrão é o comandante do barco. Abaixo do patrão, na linha de frente, estão o embaixador, o contramestre, o marujo-guia, o contraguia, o piloto, o guarda-reinado e as “figuras” (componentes que organizam as filas e a marcha do cortejo).
Quanta longevidade! Os gajeiros daqui confabularam regulamento próprio para a transmissão e perpetuação dos saberes ancestrais. Exemplo: os ensaios da marujada, que ocorrem de 29 de junho a 14 de agosto, converteram-se em rito de passagem para novos calafatinhos. Calafate, no idioma de Camões, é aquele que calafeta a embarcação. Calafatinhos, na marujada, são meninos com cinco anos ou mais. Formam a “categoria de base” por meio da qual os marujeiros buscam a coerência interna da tradição. Conforme a disciplina, a perseverança e a desenvoltura, um calafatinho pode ser promovido a gajeiro.
– Já aconteceu de tê setenta calafatin num desfile – diz o adolescente Raul Otávio Rocha Araújo (Bololô), patrão dos calafatinhos, função criada recentemente na marujada de São Gonçalo. Os calafatinhos obedecem a Bololô, que obedece ao patrão Aparecido, que…
– Pra ser calafatinho, a criança precisa de autorização dos pais? – Pergunto.
– Precisa – diz Bololô.
– Apelidaro ele de Bololô porque ele era muito grande e gordo quando criança – sorri Jésus Maria Leão que se autodenomina “lavrador free-lance”.
Branco, franzino, orelha meio de abano, Jésus aparenta ter mais que 38 anos, embora sua disposição seja incalculável. Vestido com farda branca e usando quepe de marinha, uma de suas funções como embaixador é fazê embaixada.
– Embaixada é música, Jésus?
– Não. Música é letra cantada. Embaixada é só falada.
– Tem rima?
– Às vez tem.
– Pra que serve uma embaixada?
– Nas embaixada falamo das origem da marujada e da nossa fé. A gente tamém procura informá a população sobre o que é a marujada e por que a gente faz do jeito que a gente faz.
Os ensaios, além de tudo, são um momento de integração do grupo, quando se recordam letras de músicas, ritmos, passos, batidas de pandeiros e tambores etc. O mais importante, sempre, é esclarecê os procedimento.
– Num é que é proibido tudo; é que tem hora pra tudo – esclarece Jésus.
Aplicado, Jésus guarda consigo um caderno capa dura azul com folhas quadriculadas contendo dezenas de embaixadas e letras de músicas.
– O que num pode é… – prossegue Jésus – fumá, bebê, conversá fora de hora. Tem de tê concentração e seriedade. No ensaio ou no desfile, tem de tê. Depois que passou o ensaio ou o desfile, aí tudo bem, o marujeiro pode fazê o que quisé.
Por aqui conta-se que a festa da marujada começou em alto-mar, dentro de uma frágil embarcação de escravos vindos de Portugal. O navio encalhou em recifes. Os marujos que saíam do barco para tentar livrá-lo não regressavam jamais. O dono do navio, ao que tudo leva a crer, era descrente. Então o dono do navio falou: ora, se ocês credita tanto assim em Nossa Senhora intão pede pro navio desencalhá e pra nós achá nosso rumo de novo.
Os negros rezaram, rezaram, rezaram. E prometeram a Nossa Senhora que, se o navio atingisse a terra firme, eles dançariam e coroariam uma família em homenagem à Santa. Logo surgiu uma luz no céu, que iluminou a embarcação. Milagrosamente, o navio se livrou das pedras e retomou seu destino. Os negros desembarcam, cumprem a promessa.
– A primeira festa foi feita pelo próprio dono do navio e as otra foro organizada pelos negro – acredita Jésus.
Antigas escrituras da Igreja Católica revelam que a Festa de Nossa Senhora do Rosário foi instituída pelo papa Pio V em 1571, quando se celebrava a batalha naval de Lepanto. Segundo consta, os cristãos saíram vitoriosos porque invocaram o auxílio da Santa Mãe de Deus, rezando o rosário. Segundo a lenda, em 1328 Nossa Senhora apareceu para São Domingos, recomendando-lhe a reza do rosário para a salvação do mundo. Rosário significa Coroa de Rosas oferecidas a Nossa Senhora. A devoção dos negros a Nossa Senhora do Rosário é anterior à descoberta da América.
O desfile de agosto em São Gonçalo do Rio Preto é uma encenação ressignificada do périplo dos ancestrais negros. Nos autos orais consta ainda que o contramestre embebedara o piloto do navio e roubara a mala contendo o dinheiro e a bússola da embarcação…
– … Por isso o barco perdeu e encalhô – suspeita José Lima Soares, contraguia.
E fico sabendo que, pela mesma razão, o contramestre, no desfile, veste roupa florida e esvoaçante, diferente dos demais gajeiros.
– É pra mostrá desordem, bagunça, desorientação – resume Beto (Carlos Henrique), contramestre.
Na véspera do desfile (dia 14 de agosto, por volta das 20h), os marujeiros buscam a bandeira de Nossa Senhora do Rosário na casa do mordomo perpétuo (Cornélio Borges, falecido) e hasteiam-na à porta da Igreja Matriz.
– No dia do hasteamento da bandeira a gente vai à paisana – diz o baixinho Luiz Carlos Araújo (o Luizin), 42 anos, piloto de trator de arado, marujo-guia e violonista do grupo. O pai de Luizinho também era marujeiro. – E mesmo no dia 15 de agosto, marujeiro num pode andá fardado no mei da rua antes de sê chamado. Tem que esperá chamá. Quem reúne os marujeiro é os caixeiro [dois integrantes que tocam a “caixa” ou tambor], o contramestre e o porta-bandeira. No tocá das caixa, o marujeiro sai de casa fardado e vai siguino.
Ninguém canta durante esse ritual de chamada de um por um, casa por casa.
– Só o patrão tem autonomia pra dizê: “pega a voz!” [vamos cantar!].
Às vezes o patrão precisa dizer “leva a língua”, que significa “fica quieto e escuta”.
Identificado por uma faixa diagonal no peito, o patrão é o último “tirado” no dia 15 de agosto. O embaixador, reverentemente, lhe apresenta os marujos: Aqui licença venho pedir/ licença vos hai de dar/ se não conceder a licença/ pra trás quero tornar.
O patrão apita.
Silêncio…
– Alerta, alerta! – conclama o patrão.
– Alerta estamos! – respondem os gajeiros.
Silêncio…
– Ô, meus gajeiro. Afinai os instrumento…
Batem-se as caixas, sacodem-se os pandeiros. Os gajeiros partem em marcha pelas ruas da cidade, entoando cânticos, rumo às casas do conde e da condessa, do príncipe e da princesa, do prior e da priora, nesta ordem. Por último, buscam o rei e a rainha, casal mais importante do reinado.
Ô, de lá da proa, ô mestre piloto/ Ô, de lá da proa, ô mestre piloto/ Desce o pano à areia/ Ô vento é muito/ Hoje nós tamo perdido/ A barca de Lisboa/ Vem navegar no mar.
Rei e rainha representam o pai e a mãe da família que estava no navio mitológico. Nada impede que esses pares sejam casado de fato, mas é raro. Às dez horas do dia da festa, há missa; em seguida, almoço na casa dos festeiros (aqueles que oferecem alimento para os marujeiros e fiéis).
– Os festeiro em geral é gente humilde. Num pode sê alguém que, por exemplo, manda pará um caminhão de cerveja e diz: “hoje é tudo por minha conta” – justifica Jésus.
Segundo o mito fundador, a coroação do rei e da rainha escravos sempre foi celebrada com moderação, conforme as posse.
– Duas coisas que a gente num qué tê den’da nossa marujada: político, por causa da perdição; e mulher, por causa da tradição – diz Jésus, com o assentimento sincrônico de Aparecido, Zé Lima, Luizin, Zé Raimundo e Pedro, durante nosso bate-papo na capela paroquial.
– A marujada é uma festa só de negros?
– Isso a gente adaptou. Na nossa marujada desde pouco pode tê branco também – responde Jésus em tom de quem tem autorização geral para tudo, dentro do possível.
Silenciosas mas proficientes, as mulheres têm participação ativa na festa. Costuram as fardas, cozinham, organizam, servem os marujeiros de comida no grande almoço do dia 15 de agosto e durante os ensaios.
Elas são importante base de apoio braçal e psicológico contra a (e a favor da) rotina nesta cidade meio esquecida, surgida à margem esquerda do rio Preto na primeira metade do século XVIII, talvez por causa da descoberta de diamantes na serra das Abóboras. Em 1917, três mil e quinhentas almas lutavam pela sobrevivência e por um sonho aqui, mais ou menos o mesmo regimento de guerreiros em campo hoje. A marujada encarnou a resistência.
Escrito em 2006 para o projeto Resgate Cultural da Estrada Real, patrocinado pelo Sebrae-MG e realizado pela Fundação de Arte de Ouro Preto (Faop).